Entrevista com Peter Pál Pelbart
“Quando você está no computador, você não sabe se está trabalhando, se está socializando, se entretendo etc. As fronteiras se desmancharam e nós estamos o tempo todo em um estado de alerta, de conexão, de produtividade”
Nascido na Hungria, Peter Pál Pelbart é filósofo, tradutor e professor titular de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Em um de seus textos, você diz que, no contexto da sociedade contemporânea, ter opinião já não tem muita importância, porque isso acaba se dissolvendo nas estruturas modernas de poder. Essa ideia vai na contramão do que muitas pessoas pensam. Aonde você quer chegar com essa análise?
Isso tem tudo a ver com uma entrevista, por exemplo. Em geral, em uma entrevista o sujeito está convocado a ter uma posição sobre todo e qualquer assunto, a ter um lado. Como se não houvesse, já de antemão, um jogo de cartas marcadas. Existe um livro do [filósofo francês Gilles] Deleuze chamado Diálogos, que é uma conversa dele com uma aluna. É uma tentativa de entrevista, mas cujo formato ele driblou e, em vez de ter perguntas e respostas, eles decidiram escrever juntos. No livro, ele diz quanto detesta as entrevistas, porque é preciso firmar uma posição, fazer um balanço sobre passado, presente, futuro, e uma espécie de catalogação ou de inventário. Acho isso bonito. Talvez a questão não seja tomar partido em relação a problemas já dados, formatados e propostos por outros, mas ter o direito de construir problemas, e não responder a problemas alheios que já estão pré-formatados. Essa mania de se situar numa polarização já dada impede a gente de pensar, de colocar em suspenso a polaridade. Deixar que o problema tome a pessoa de assalto a partir dessa suspensão é interessante e instigante, mas esse achismo por toda parte é desesperador. Tivemos essa saturação de opiniões em geral muito rasas.
Com a proliferação e disseminação das redes sociais, o discurso se tornou muito superficial, plano?
Sim, e às vezes dá vontade de se desconectar. Com toda essa infosfera tão saturada, essa circulação de signos, informações, imagens, solicitações e imperativo de reagir imediatamente, vira e mexe eu tenho vontade de sustentar uma desconexão ativa que pode dar algum espaço para pensar, para que o que se diz possa ter algum sentido. O [filósofo e escritor italiano] Franco Berardi tem uma ideia bonita relacionada ao neuromagma, que seria essa espécie de caldo de signos, imagens e estímulos incessantes em que todos estamos mergulhados e que excede muito a nossa capacidade humana de formular, elaborar. A partir disso, o que nós temos é mais uma reação do que uma posição. A gente reage mais a ondas psicomagnéticas, de informação, entusiasmo, terror, que atravessam o campo social. Reagimos a essas ondas como se não tivéssemos mais a capacidade de pensar. Não é que o Franco abomine isso, porque ele não é um nostálgico da era pré-tecnológica, mas ele quer entender quanto de excesso a mente humana suporta e quanto, a partir de certo limiar, ela apenas reage. Isso me intriga, porque talvez seja um pouco antigo as pessoas acharem que a partir de uma certa consciência escolheram um lado ou outro. Essa ilusão da liberdade é muito curiosa, como ela persiste. Talvez a gente precise imaginar que é livre, que tem um espaço interior inviolável, uma consciência autônoma, mas talvez seja preciso repensar isso tudo.
Quando você fala da questão da decisão, da tomada de posição, podemos dizer que isso seria um simulacro? Ou seja, estaríamos mais reagindo do que criando soluções?
Há mecanismos de poder um pouco mais sofisticados. Não é que eles mandam você fazer, mas criam uma atmosfera, um ambiente e um entorno em que a sua conduta pode ter uma margem de manobra um tanto limitada. Cada um se considera autônomo e livre, com sua margem de manobra, mas o ambiente foi trabalhado suficientemente para incitar certas condutas, evitar outras, propiciar tendências. Não são modalidades de comando vertical direto, mas que suscitam direções. Nós não estamos em um vazio, estamos em uma espécie de sociedade de controle. A sociedade de controle não manda você fazer, ela permite que você, a céu aberto, circule livremente, desde que tenha uma coleira eletrônica no tornozelo ou um celular na mão.
Como você vê a questão da uniformização dos afetos, das condutas pessoais e até dos sonhos. Você acha que isso está ligado a esse controle?
De fato, há uma espécie de homogeneização de certo modelo de classe média consumista ocidental que vai tomando conta do planeta junto de certo tipo de entretenimento, percepção, uso do espaço, regulação do tempo e outras coisas que são do pós-Fordismo, sem essa separação tão estrita do tempo do trabalho, do descanso, do entretenimento. Tudo isso se mistura um pouco. Quando você está no computador, você não sabe se está trabalhando, se está socializando, se entretendo etc. As fronteiras se desmancharam e nós estamos o tempo todo em um estado de alerta, de conexão, de produtividade. O sonho é também um tempo de trabalho. Por exemplo, alguém que trabalha em uma agência de publicidade vai colher no sonho uma solução para a campanha da manhã seguinte. A produção anexou a esfera lírica. Esses âmbitos que antes eram considerados privados, como o sonho, uma certa relação com o corpo, o psiquismo, tudo isso foi anexado por mecanismos muito sofisticados. Isso cria de fato uma espécie de homogeneização, mas também porque o mercado precisa de nichos diferentes para ir se ampliando, então ao mesmo tempo há diferenciações que vão sendo criadas, basta ver a quantidade de tribos alimentícias, sexuais, ideológicas. Tem uma homogeneização e ao mesmo tempo certas diferenciações. Não sei se elas são muito significativas do ponto de vista que tem me interessado mais atualmente, que é: que diferentes modos de existência são possíveis hoje?
E quais são os modos de existência possíveis hoje?
Não tenho uma lista pronta daqueles que seriam possíveis, mas me ocupa cada vez mais o desafio de pensar como se inventam modos de existência, porque eles não estão prontos. Os que estão são os que a gente conhece, que o mercado oferece, mas são algumas maneiras de viver já prontas e você faz a sua escolha. No entanto, alguns filósofos com os quais eu trabalho têm o desafio de tentar sondar no que consiste inventar um modo possível, e não escolher entre os que estão dados. Inventar um possível é inventar uma coisa que não estava no nosso repertório. Acho que há certos acontecimentos, às vezes individuais e às vezes coletivos, que impelem e quase forçam um sujeito ou uma subjetividade coletiva a um possível. Por exemplo, nas manifestações de junho do ano passado. Foi uma coisa súbita, que ninguém previu, e que tem um misto de esgotamento de alguma coisa e o vislumbre de outra, mas esse vislumbre é muito tênue, porque são massas na rua sem um projeto claro, um líder. Tinha, nesse momento, uma recusa maciça da representação, de uma ideologia clara. Acho que foi um fenômeno em que se tangenciou alguma coisa dessa ordem. Claro que depois refluiu, e tem gente que vai dizer que nada aconteceu porque não teve uma inscrição institucional. Contudo, houve talvez uma relutância justamente de inscrever institucionalmente algo que representava a invenção de uma outra cena. Não um parlamento, não as instituições de representação, mas um outro modo de ocupar a rua, dar voz a uma pluralidade de desejos, mesmo que eles pareçam hoje um pouco efêmeros ou muito utópicos. Talvez tenha havido naquele momento uma tentativa de imaginar outros modos de existência que não esses que tomam conta de todos nós nas diferentes classes.
Quanto ao corpo produtivo, hoje mais do que nunca a gente vê essa questão em editoriais sobre saúde, academias, plásticas. Isso estaria ligado a estar bem para a produção?
Aí você tem um deslocamento. O que antes era o foco do sujeito, que seria a integridade psíquica, foi deslocado para o corpo. Isso faz com que se trabalhe intensamente o corpo, principalmente em duas direções: para que o corpo obedeça a uma espécie de padrão estético das celebridades e para que obedeça a uma certa normatividade “científica”, em relação ao que a ciência diz que é bom para a saúde e as revistas nos transmitem como a perfeição em saúde ou em estética. Ninguém alcança esse padrão ideal, todos precisam trabalhar muito para obedecer minimamente a esses padrões e isso cria uma sensação de insuficiência. Esse corpo não é mais aquele corpo do hostilizado e disciplinado, porque é outro contexto menos militarizado. Não é “eu obedeço ao professor, ou ao capitão, ou ao dono da empresa”. É “eu quero ter saúde”, “eu quero ter beleza”. É outra modalidade de exercício de poder que não é por ordem mas por incitamento, por sedução. Então, claro, não é o corpo para a subversão ou a rebelião, é o corpo de uma certa hiperprodução.
O que percebemos hoje é que a sociedade conseguiu colocar o chefe, ou o cartão de ponto, dentro da nossa cabeça. Houve essa interiorização?
Sim, houve uma interiorização desses mecanismos de poder que antigamente dependiam de uma figura externa e foram interiorizados de tal modo que o que era um controle virou um autocontrole. As pessoas estão incumbidas de exercer sobre elas mesmas o controle. O sujeito é o chefe e o empregado dele mesmo, juntaram-se as duas figuras na mesma pessoa. Não tem eficácia maior do que essa, porque talvez ninguém seja mais cruel consigo mesmo do que a própria pessoa. Isso é uma figura dessa interiorização, mas também é reflexo de uma horizontalidade. Por exemplo, em relação ao celular. Todos se controlam de alguma maneira, então não existe uma instância transcendente que controla todo mundo. É uma horizontalidade que cria uma dinâmica diferente, porque não é nada democrática, ela é opressiva. Talvez a dificuldade hoje é que você não localiza de onde vem o poder. O poder não vem de um lugar como antigamente. É uma configuração tão diferente que você não tem mais um centro. Existem mecanismos muito espalhados e disseminados que exercem capilarmente o poder. O poder me atravessa inteiramente. A fronteira se reconfigurou muito.
Ainda sobre o controle, existem alguns padrões da sociedade refletidos em uma agenda. São os sonhos comuns. A classe média paulistana, por exemplo, sempre quer levar o filho à Disney. Isso está dentro desses mecanismos de controle?
Não tem coisa mais decepcionante do que você seguir o script de roteiro pré-fabricado. Há uma depauperação na imaginação sobre o que é desfrutar, o que é se divertir, o que é descobrir, o que é ter uma experiência. Você cumpre um destino. É um desafio coletivo, cultural, saber o que é realmente destampar a imaginação. Esse despotismo do “desfrute”, “goze”, “tenha prazer” e “consuma” obtura totalmente a imaginação. Isso a gente poderia chamar do conceito da vida nua, do filósofo italiano Giorgio Agamben, em geral usado para situações de exceção. Por exemplo, em um campo de concentração, todos os direitos estão suspensos, mas essa suspensão vira uma normalidade, e a vida das pessoas é reduzida a como seria a sua condição biológica, animal, e eles são tratados assim. O conceito de vida nua não é só usado para situações excepcionais, mas também para situações nas democracias ocidentais, por exemplo, onde há um luxo, um consumo, mas a latitude da vida foi muito estreitada. É preciso pensar modalidades de desconexão, reativação de certa afetabilidade, ou seja, a capacidade que as pessoas ainda têm de serem afetadas e afetarem-se, sem ficarem anestesiadas por o que essa fábrica de entretenimento faz.
E essa confusão cada vez mais evidente entre a vida real, cotidiana, e uma vida de ficção, sugerida? Isso tem a ver com a diminuição do espectro de vontades?
Claro, existe uma luta contra certos poderes, contra certos tipos de dominação: quais dispositivos a gente é capaz de inventar que possam disparar outra sensibilidade, outra percepção, outra sociabilidade e outras formas de vida? Por um lado, reconhecer essa homogeneização, mas ao mesmo tempo ter olhos para perceber onde estão nascendo e se gestando experimentações. E, para isso, acho que nos falta uma espécie de acuidade perceptiva, uma capacidade de ver onde é que estão experimentando novas sensibilidades. Os jovens, por exemplo, têm novos modos de se agregar, de se conectar, e eu francamente sei que ali está se gestando alguma coisa que mal consigo acompanhar. Como ficar atento para esses germes, de onde podem nascer maneiras que nos surpreendam? Estamos sempre um pouco atrasados em relação a isso. Tenho uma ideia de que parte da intelectualidade não abre mão de suas ferramentas teóricas, cognitivas, e tem mais dificuldade de perceber isso que vem vindo, por conta de aferrar-se às suas ferramentas.
Em um texto seu, você diz que em condições de imbecilidade o organismo reage com pânico, depressão ou reterritorializando a identidade. Como você vê essa patologização da sociedade contemporânea?
Uma autora espanhola chamada Beatriz Preciado fala sobre a era do fármaco-porno-bio-poder. Ela tenta mostrar uma espécie de monitoramento farmacológico dos humores, no qual há remédio para ficar mais excitado, mais tranquilo, menos deprimido, e que essa química, hoje em dia, faz parte de um mecanismo de controle dos corpos, dos humores, dos afetos, das conexões. Há uma série de remédios que evitam que o sujeito se desconecte inteiramente, para mantê-lo plugado e funcionando. Ela experimentou no próprio corpo várias dessas coisas para pensar quais modalidades de resistência ativa nós teríamos para enfrentar essa era. Então, respondendo a sua pergunta, talvez a maior patologia seria uma espécie de normopatia, a normalidade imposta como uma espécie de exigência absoluta. Acho que a patologia maior é essa. A gente precisaria reinventar modos de desconexão. Há um esgotamento de muita coisa. O esgotamento, para mim, é quase uma categoria política. Como deixar que coisas, como instituições, condutas e valores, que se esgotaram possam realmente morrer e ser enterradas. Sou a favor de que haja suspensões, que haja paradas, interrupções nesse trem louco que vem vindo há muitas décadas numa velocidade crescente e nos obriga a mobilizar toda a nossa energia com finalidades cada dia mais desconhecidas e inúteis. Enquanto não se frear esse trem, não será possível inventar finalidades outras que não a produção pela produção, o lucro pelo lucro e essa espécie de racionalidade capitalista que nos enlouquece literalmente. É preciso poder entrar num corpo a corpo com isso. É no meio que se briga. Mesmo nos menores espaços, em um grupo de teatro, uma sala de aula, por toda parte, isso está em questão. Não acho que tem a ver com a decisão de um líder, um chefe, e muito menos a arrogância de um intelectual que pretenda falar em nome de todos. É outra coisa. É como uma espécie de implicação ir experimentando brechas, frestas, interrupções, frustrações, e isso tem uma espécie de disseminação eventual.
Esta entrevista foi dada ao Sesc São Paulo em dezembro de 2014.