Elizabeth Roudinesco – (IN) FIDELIDADE À AVENTURA FREUDIANA
Entrevista concedida a distância em 2006 por Roudinesco à Revista Percurso #37.
Elisabeth Roudinesco confere a esta entrevista a sagacidade característica de suas idéias e posturas. Historiadora e psicanalista francesa, ela parece partilhar algo da trilha que reconhece na obra de Jacques Lacan, a quem descreve como “um homem […] fundador de um sistema de pensamento cuja particularidade foi considerar que o mundo moderno posterior a Auschwitz havia recalcado, recoberto e rompido a essência da revolução freudiana” (1994). Roudinesco, ela própria, ao escrever essas linhas deixa entrever sua atenção dedicada ao que se passa com a psicanálise em seu/nosso tempo. Suas publicações situam a importância e a força do saber e da clínica, desde Freud, no interior das civilizações moderna e contemporânea, insistindo na lembrança de que o sujeito psíquico não se reduz ao cérebro e suas funções, bem como que a política e a história das sociedades estão implicadas nas dinâmicas dele constitutivas. Sendo assim, a ciência biológica que esquadrinha o corpo e o cérebro, ao buscar neutralizar a idéia radical de conflito que funda o humano, nos coloca a todos sob o risco de uma espécie de “higienismo totalitário” que descarta a vida pulsional e o inconsciente.
Nesta entrevista a Percurso, feita à distância em agosto de 2006, ela abordou sua passagem à pesquisa da história da psicanálise a partir do interior de sua própria análise pessoal, amalgamada com a historicidade e a política da psicanálise francesa contemporâneas. Isso, como se poderá acompanhar, não é uma postura qualquer. Desse ponto em diante, foram vários os temas abordados. Entre eles o leitor encontrará reflexões a respeito da constituição das “famílias homoparentais”, das políticas de igualdade racial, de uma espécie de contra-senso imposto pela globalização no que tange à intolerância, da problemática dos psicanalistas no interior das instituições, de certo descompasso entre a criação de pensamento e o exercício clínico por parte dos analistas atuais e ainda sua constatação sobre o que foi e o que pode ser, hoje, o movimento internacional dos Estados Gerais da Psicanálise.
Roudinesco é também “directrice de recherches” na Université de Paris VII e “chargée de conférences” na École Pratique des Hautes Études. Seus textos e obras são muitos. Entre os que escolhemos destacar estão: História da psicanálise na França (2 vols., Jorge Zahar, 1987, 1988), Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (Companhia das Letras, 1994), Genealogias (Relume-Dumará,1995), Dicionário de Psicanálise (com Michel Plon, Jorge Zahar, 1998), Por que a psicanálise? (Zahar, 1998), A família em desordem (Jorge Zahar, 2003), De que amanhã… – Diálogo com Jacques Derrida (Jorge Zahar, 2004), O paciente, o terapeuta e o Estado (Jorge Zahar, 2005).
Esperamos que o leitor possa desfrutar das idéias e questões aqui desenvolvidas por Elizabeth Roudinesco. Sem dúvida, trata-se de uma entrevista que nos convoca a seguir pensando.
Realização: Andréa Carvalho Mendes de Almeida, Bela Sister, Cristiane Sammarone, Mara Selaibe, Silvio Hotimsky e Susan Markuschower.
Tradução: Andréa Carvalho Mendes de Almeida.
Revisão: Renato Mezan.
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Percurso: Em seu percurso entre a história e a psicanálise, a senhora desenvolve questões que constam no prefácio de seu livro Genealogias (1995), a respeito de seu trabalho como ego-historiadora. Poderia nos falar mais sobre isso?
Elizabeth Roudinesco: A idéia de ego-história, proposta por Pierre Nora, visava a fazer o historiador testemunhar – usando os métodos da história – sobre si mesmo. Não contar sua intimidade (como faria numa cura analítica), mas tentar explicar devido a quais motivações pessoais escolheu um objeto de estudo e não outro, e também por qual percurso genealógico chegou a essa escolha.
No que me diz respeito, encontrei-me numa situação semelhante à de Michel Foucault, que era filho de médico e se tornou historiador da medicina. Eu era ao mesmo tempo filha de psicanalista – minha mãe se tornou psicanalista aos 50 anos – e filha de médicos, pois meus pais tinham esta profissão e eu deveria ter estudado medicina. Meu pai era um clínico genial, e isso me fez sentir um grande interesse pela medicina; mas logo descobri que seria incapaz de me tornar médica, pelo simples fato de que tinha medo da morte e da doença. Além disso, se seguisse essa carreira, eu jamais estaria à altura do meu pai. A psicanálise foi uma das razões do divórcio dos meus pais, divórcio muito benéfico para mim, mas também motivo de um conflito com o qual eu voltaria a me enfrentar por ocasião do meu trabalho com a da história da psicanálise.
Meu pai, nascido em 1883, pertencia a uma geração de médicos bastante representativa do antifreudismo francês. Ele achava Freud um charlatão obcecado pela sexualidade, e no fundo acusava a Psicanálise de ser responsável pelo fato de minha mãe o ter abandonado. Realmente, a partir de sua entrada no movimento psicanalítico e depois de alguns anos de análise, ela mudou de vida: de certa maneira, trocou a clínica médica pela clínica psicanalítica, apesar de ter continuado a ser pediatra, e ao mesmo tempo separou-se de meu pai para casar com outro homem.
Eu tinha 9 anos nessa época, e fiz um pouco de análise com Françoise Dolto – da qual não guardo nenhuma recordação. Depois estudei Letras, porque queria escrever livros. Minha primeira vocação era a escrita e meu pai tinha sonhado em ser escritor. Ele amava as artes: era um mecenas, colecionador e apaixonado pela história. Na infância, vivi de perto os grandes acontecimentos da história da psicanálise, principalmente a primeira cisão. Eu encontrava Lacan com freqüência, já que ele era amigo de minha mãe. Pelo lado do meu pai, escutava o tempo todo coisas terríveis sobre Freud e sobre a psicanálise. Assim como toda a família de minha mãe, ele achava que ela tinha se “perdido”, renunciando a uma brilhante carreira médica.
Foi em 1966, enquanto cursava Letras e Lingüística e descobria os textos dos principais pensadores estruturalistas (Foucault, Althusser, Lévi-Strauss), que compreendi quem era Lacan. O homem era uma figura familiar, mas eu não o via como um pensador importante. Foi a partir da leitura dos Escritos, e distanciada do que ele era como personagem, que tomei conhecimento da sua obra. Então eu disse à minha mãe: “esse teu Lacan é genial!”, o que me rendeu a seguinte resposta: “faz muito tempo que te digo isso!”
Entrei na Escola Freudiana de Paris em 1969; na época, estava começando a publicar textos sobre crítica literária com um certo tom estruturalista, na revista Action Poétique, dirigida por Henri Deluy. Em seguida fiz uma formação psicanalítica clássica. Por volta de 1977, tendo publicado três livros e impulsionada por René Major de um lado e por Michel de Certeau de outro, decidi entrar na trilha da história e tomar como objeto de pesquisa a aventura freudiana na França, numa época em que ninguém pensava sobre esse assunto.
Não tenho certeza, ainda hoje, se o fato de ter feito uma análise me ajudou no meu trabalho de pesquisadora. Que facilitou a redação de minha ego-história é evidente. Eu diria que, para mim, a passagem para a história funcionou mais como uma maneira de desligar-me da psicanálise, do seu meio, dos seus atores, para melhor os descrever – simultaneamente como algo que eu conhecia “de dentro” e como algo objetivável, do qual me separava. No meu caso, a passagem para a história foi equivalente ao que Lacan chamou de passe.
O fato de ter sido analisada e ser analista ajudou-me, sobretudo no meio psicanalítico. Os atores franceses desse movimento não teriam, na época, concordado em confiar seu testemunho a um historiador de profissão: eram demasiado hostis à própria idéia de que sua história fosse escrita para poder responder a tal demanda. E, no entanto, para vários deles, havia chegado o momento de “falar”, de contar suas lembranças, ou seja, de confiá-las a alguém.A análise ajudou-me também a suportar a inacreditável violência desse meio. As diversas escolas detestavam-se entre si; cada uma tinha seu próprio dogma, e as idolatrias estavam mais vivas do que nunca. Penso que terminei minha análise confrontando-me a essa violência e a sofrendo. Eu sabia que seria muito atacada, pois já havia me apropriado da posição de historiadora, perfeitamente resumida por Marc Bloch: “Robespierristas, anti-Robespierristas, nós lhes suplicamos: pelo amor de Deus, digam-nos simplesmente quem foi Robespierre!” Evidentemente, o Robespierre da psicanálise foi Lacan. Eu só poderia ter sido rejeitada pelos lacanianos, que eram adoradores, e pelos anti-lacanianos, que o odiavam.
Rapidamente, percebi a importância de “exceção francesa”1: por um lado por causa da Revolução de 1789, e por outro pelo Caso Dreyfus. Na França, tudo sempre acontece num palco trágico, o mesmo das grandes dinastias heróicas da Grécia. Tudo se assemelha aos Labdácidas, como observou Fernand Braudel: nesse país, a divisão é originária, e a unidade não passa de uma fachada. A França é sempre a repetição dos jacobinos contra os monarquistas, dos “da montanha” contra os girondinos, dos Armagnacs contra os Bourguignons, dos partidários do Capitão Dreyfus contra os que o consideravam como traidor, da Comuna de Paris contra as tropas de Versalhes. Ou seja, passamos sempre pelos extremos, quase do abjeto ao sublime: ora Valmy, ora Vichy.
Muito bem, reencontramos isso na história da psicanálise na França. Ela é mais violenta e conflituosa do que nos outros países. O conflito não me assusta, sem dúvida porque tive uma experiência positiva no conflito que levou à separação de meus pais, e que narro em Genealogias: aliás, ele não está no coração da doutrina freudiana?
Percurso: Em seu diálogo com Derrida (De que amanhã …), a senhora defende que a melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser infiel a ela, não a acatar ao pé da letra, como uma totalidade. Como a senhora se considera herdeira da psicanálise? Onde localiza sua infidelidade?
E.R.: Gosto muito dessa injunção de Derrida. Minha infidelidade está em ter sempre mantido uma posição crítica em relação às hagiografias, aos dogmas, às histórias religiosas e às transferências loucas, tão freqüentes entre os psicanalistas. A passagem para a história tornou-me ainda mais lúcida. Sou portanto infiel ao que governa o vínculo entre os psicanalistas, qualquer que seja a escola: à crença na idéia de que “ser analista” permite o acesso à essência de um saber absoluto sobre o mundo. Disso se segue que, quando atravessamos essa experiência e clinicamos, tornamo-nos uma espécie de eleitos, e não precisamos nos confrontar criticamente com outras abordagens (histórica, sociológica, filosófica), porque elas não são nada comparadas ao que o olhar psicanalítico aporta.
Portanto, sou infiel à ideologia dos psicanalistas que interpretam o mundo em função da “sua clínica” ou da sua experiência do divã, e que na maioria das vezes não fazem nada mais do que aplicar os conceitos freudianos à realidade do mundo, acreditando que assim o estão pensando.
Esta atitude arrogante teve um papel considerável nos discursos venenosos contra Freud e a psicanálise. Ou seja, refugiando-se numa pretensa fidelidade à sua doutrina, inúmeros psicanalistas desertaram dos combates políticos de sua época, inclusive do combate contra seus piores inimigos, que tinham o dever de assumir. Esta pretensa “neutralidade” permitiu que alguns psicanalistas se mantivessem “neutros” frente às ditaduras, e, mais recentemente, permitiu a outros não reagir aos ataques virulentos e mentirosos dos antifreudianos modernos: historiadores revisionistas, adeptos do cognitivismo ou herdeiros do anti-semitismo. Isso é algo ao que serei eternamente infiel, para ser cada vez mais fiel à concepção que tenho da aventura e da conceitualização freudianas.2
Percurso: Em seu livro Por que a psicanálise? (Jorge Zahar, 2000) no capítulo “A derrota do sujeito” (§ 6 e 7), a senhora afirma que a “sociedade democrática moderna” visa a eliminar a manifestação dos conflitos e da violência a partir da implantação de valores globalizantes e econômicos. Nela, os indivíduos não devem manifestar sofrimento nem ter ideais sociais, à exceção do pacifismo ou da moral humanitária. Em decorrência, o ódio ao outro adquire um aspecto “perverso e ainda mais terrível, por assumir a máscara de dedicação à vítima.” Trata-se da intolerância exercida não pela via da violência explícita, mas pela força persuasiva do eu narcísico, empenhado em anular a alteridade transformando o outro, antes mesmo que ele possa se afirmar como tal, em imagem e semelhança de si. A senhora poderia nos falar um pouco mais sobre esse modo de exercício da intolerância, a partir de algum exemplo atual?
E.R.: Penso que as sociedades ocidentais, submetidas à globalização selvagem, tentam suprimir o conflito – quer dizer, qualquer referência à luta de classes, ao inconsciente e às pulsões – por meio de programas higienistas. Estes não são apenas uma forma moderna do biopoder, de biologização do humano: transformam os povos em indivíduos assistidos, vitimados e violentados, justamente para não entrar em conflito com ninguém, ou para não ter mais inconsciente ou pulsões. Uma coisa é encorajar a civilização, mostrando que ela repousa sobre a necessidade de que o homem renuncie à sua violência, às suas pulsões e aos seus desejos criminosos e bestiais. Outra é considerar que qualquer excesso deve ser erradicado em nome da saúde pública e do bem-estar, individual ou coletivo. Estamos deslizando de um progressismo necessário e civilizador para um higienismo totalitário, que só poderá produzir efeitos perversos.
Em nosso mundo, a biologia – ou seja, a ciência – é um novo Deus, muito mais temível, sob certos aspectos, que o Deus do monoteísmo, pois ele diz a verdade e aprisiona o homem em seu gozo, sem nenhuma aspiração que não seja sua própria finitude. Ou seja, biologizando incessantemente a existência humana, impelimos o homem a tomar-se por um Deus, por um sujeito particular que só agirá por meio do ódio pelo outro, em nome da verdade. Desse modo, acreditando produzir luzes, a ciência produzirá obscurantismo.
Percurso: No que diz respeito à crise causada pela charge de Maomé publicada no jornal dinamarquês Jyllands Posten, Alain Finkelkraut afirma (em artigo na Folha de S. Paulo, fevereiro de 2006): “Quem são os responsáveis primordiais pela crise? Os cartunistas e jornalistas que não quiseram temperar o exercício da liberdade de expressão com o respeito às crenças, dizem muitos dos chefes de governo ocidentais, acompanhados por numerosos intelectuais. Esses sábios se esquecem de que o respeito às crenças e à liberdade de expressão são dois lados da mesma moeda.” Houve, como se sabe, muita polêmica a este respeito, manifestações violentas etc. O que a senhora pensa disso?
E.R.: A partir da citação que vocês me forneceram, não entendo qual é a posição de Alain Finkelkraut. No que me diz respeito, penso que a liberdade de blasfemar é um direito inalienável nas nossas sociedades laicas, e não deve sofrer nenhuma restrição. Portanto, não aprovo a qualidade medíocre das caricaturas, mas lamento a falta de coragem da imprensa francesa. Os diretores responsáveis deveriam tê-las publicado, sem nenhum comentário positivo ou negativo, exclusivamente para marcar que, por princípio, o direito de blasfemar é inalienável.
Em vez disso, tergiversamos em nome de sabe-se lá qual “sofrimento” dos fiéis, e com isto assistimos ao assanhamento da “Santa Aliança” dos representantes dos três monoteísmos, que aliás, na França, aproveitam para investir contra as imagens publicitárias que julgam ofensivas. Apenas o jornal Charlie Hebdo teve coragem de publicar as caricaturas, acrescentando desenhos que ironizavam as outras religiões. Fiquei me perguntando se daqui a pouco não vamos começar a por no Index certos textos do Marquês de Sade. Se isso acontecer, não será de maneira direta, já que a censura oficial não existe mais na França. Mas é possível, por exemplo, invocar o “sofrimento” produzido em alguns fiéis, em determinadas circunstâncias, pela excessiva visibilidade das obras de Marquês. E assim por diante.
Não acredito que se possa lutar contra a intolerância religiosa dos islâmicos fanáticos pretendendo proteger o “bom Islã”. Hoje em dia, no mundo todo, o islamismo radical não é representante de um Islã das luzes ou de um antijudaísmo no sentido clássico, e sim de um anti-semitismo nu e cru. Se os islâmicos iranianos fossem tolerantes, poderiam perfeitamente ter respondido às caricaturas contra o profeta com caricaturas que ridicularizassem o Deus dos judeus e dos cristãos. Em vez disso, responderam com um discurso negador, questionando a veracidade do genocídio dos judeus. Negar a existência das câmaras de gás e comparar os israelenses aos nazistas, expondo desenhos anti-semitas herdados de Drumont3, nada tem a ver com uma atitude antijudaica. É um ataque à suposta “raça judaica”, e não à religião judaica. A diferença é bem grande.
Percurso: Em seu livro A família em desordem, a senhora aborda as diversas transformações sofridas pela organização familiar no decorrer da história ocidental, chegando à “formidável mutação histórica” (p. 191) representada pelas famílias homoparentais, que não mais se fundam na diferença sexual. Considerando que a estrutura familiar e as funções maternas e paternas podem se manter além do modelo tradicional (casal heterossexual com dois ou três filhos), quais os desafios que a nova ordem familiar traz, de fato, à reflexão psicanalítica?
E.R.: Eu falei sobre essa questão nesse livro e numa longa conversa com François Pommier, publicada em Cliniques méditerranéennes, que em breve sairá no Brasil pela Jorge Zahar. O que me impressionou nesse debate foi que a maioria dos psicanalistas recusou questionar-se sobre essa questão essencial. Reagiram de maneira hesitante, como se se tratasse de um crime de lesa-majestade.
Basicamente disseram: se autorizarmos homossexuais a se tornarem pais, o complexo de Édipo terá sido violado. Mas se um conceito não permite pensar uma nova realidade, devemos brigar com a realidade para preservar o conceito? Ou, ao contrário, devemos refletir sobre as condições de produção do conceito e sua viabilidade dentro dessa nova realidade?
Em suma: se se interpreta o complexo de Édipo como modelo de uma concepção psicológica da família, ele se revela caduco. Mas, se reinterpretamos o gesto de Freud, despsicologizando o conceito e reencontrando a tragédia de Édipo por trás do complexo, então ele continua sendo válido.
Com isso, a questão “psicológica” pode ser reformulada de maneira clínica. O importante neste assunto não é a diferença natural ou anatômica dos sexos, e sim a idéia de que a ordem familiar está ligada a funções simbólicas. Ou seja, em termos freudianos, o necessário no vínculo genealógico é a existência de uma diferença graças à qual, renunciando à fusão, um sujeito possa se estruturar. Uma criança só pode existir simbolicamente se puder se separar de seu primeiro objeto pulsional, o objeto dito “materno”, e não importa se esse objeto é um homem ou uma mulher. É necessário que a separação ocorra e que um terceiro seja introduzido, seja qual for sua realidade concreta. A fusão é a fonte de todas as patologias.
Percurso: No final de sua biografia de Jacques Lacan, a senhora dedica o livro aos psicanalistas “anônimos” que trabalham nas diversas instituições francesas. Qual seria, a seu ver, o lugar do psicanalista e da psicanálise no universo institucional? O trabalho que eles desenvolvem pode ainda ser chamado de psicanálise?
E.R.: Neste livro, repleto de ruído e de fúria, eu quis evocar os ausentes da história, aqueles sobre os quais nunca falamos, e cuja história será preciso contar um dia: os pacientes e os terapeutas. Contrariamente a outros psicanalistas, eu acho que hoje em dia a psicanálise está em toda parte. Ela é a disciplina soberana para todas as psicoterapias que trabalham com a linguagem. Que não seja praticada da mesma maneira no consultório e nas instituições é óbvio, mas como discurso, e como forma de acesso a si mesmo e aos outros na relação terapêutica, ela é uma necessidade.
O que mudou foram as modalidades da sua abrangência. O desaparecimento da psiquiatria dinâmica em prol da psiquiatria biológica e comportamental gerou uma crise cujos efeitos são sentidos em todo o mundo. Assim como no que se refere às mudanças na família, os psicanalistas devem se mostrar menos hesitantes ante as psicoterapias – aliás, todas mais ou menos derivadas da psicanálise. Percebo que a nova geração de psicanalistas (30/40 anos) é diferente da anterior. A maioria dos clínicos são psicólogos formados na universidade, menos bem analisados e cultos que seus predecessores, porém mais pragmáticos, mais ofensivos e mais dispostos a defender sua disciplina. Mas de fato, e por causa das demandas dos seus pacientes (que na maioria não querem mais análises clássicas), eles se transformaram em psicoterapeutas, façam o que fizerem e digam o que disserem.
Percurso: Na abertura de sua entrevista para o programa “Roda Viva”, a senhora afirma que o mérito de Lacan foi introduzir uma dimensão filosófica na psicanálise. Qual seria, a seu ver, a importância desse aporte?
E.R.: Sim, este foi um gesto único e fundamental, cuja origem está na “exceção francesa”4, e que justamente por essa razão se universalizou. Os lacanianos foram a última diáspora produzida pelo freudismo. Lacan foi o único de sua geração a repensar o conjunto do sistema freudiano a partir de novos parâmetros. Nem Kohut, nem Bion, nem Winnicott, apesar do lugar de destaque lhes cabe na história da clínica, efetuaram tal revolução.
Lacan recuperou para o pensamento freudiano a dimensão filosófica que o caracterizava na Viena do início do século, e lhe conferiu uma nova grandeza. E é fascinante que tenha sido um psiquiatra originário da “França profunda”, católica e viticultora, que tenha restituído a Freud sua condição de pensador judeu do iluminismo sombrio, ancorado na cultura alemã.
Se Lacan não tivesse existido, a obra de Freud não ocuparia o lugar que hoje ocupa no mundo intelectual da maioria dos grandes países. Lacan projetou sobre Freud o seu próprio gesto, ao inventar a idéia de que ele teria trazido a peste ao mundo moderno. Por essa razão, e independentemente de todas as querelas estéreis entre lacanianos e não-lacanianos, a obra de Lacan é grandiosa, e permanecerá.
Percurso: O Congresso brasileiro está prestes a votar o projeto do Estatuto da Igualdade Racial. Este estatuto pretende, entre outras coisas, obrigar todas as pessoas a se classificar nos documentos oficiais como brancos, afro-descendentes etc. A partir disso, o Estado teria mais elementos para desenvolver políticas de “ação afirmativa.” O que a senhora pensa sobre esse tipo de política?
E.R.: Não li esse projeto, e portanto só posso me manifestar a partir do que vocês estão me dizendo. O que está acontecendo no Brasil, sociedade multirracial e multicultural, é apenas a transposição das políticas da Affirmative Action, implantadas nos Estados Unidos e no Canadá, com os problemas que conhecemos. No diálogo com Derrida, tivemos opiniões contraditórias sobre esta questão.
Na França, conhecemos algo similar, mas que se apresentou de maneira diferente: nosso Estado laico foi fundado sobre o princípio de uma República única e indivisível, recusando qualquer inscrição das chamadas “diferenças étnicas” no registro civil. Não podemos esquecer que, em nosso país, foi no regime de Vichy que se pretendeu reinscrever tais diferenças – e não queremos isso de novo.
Esse problema surgiu na França sob a forma de reivindicações grupais ligadas à memória coletiva, e por isso afetou principalmente os historiadores. Pois o Estado resolveu escrever a história. Por exemplo, recentemente, em 2005, um coletivo de pessoas das Antilhas, da Ilha da Reunião e da Guiana Francesa obteve do Parlamento a aprovação de uma lei aberrante que reconhece o caráter genocida da escravidão. Essa lei foi uma resposta a uma emenda igualmente aberrante – reivindicada pelos franceses que imigraram da Argélia – segundo a qual os manuais escolares deveriam reconhecer o caráter positivo da colonização. Em suma, nos dois casos, exige-se que o Estado reconheça que os judeus não foram as únicas vítimas de um genocídio. Os armênios também conseguiram uma lei aberrante contra os turcos.
Para além desse debate, existe certamente outro, colocado pela diferença entre memória e história, e entre nação e comunidade. Será preciso, em nome da igualdade, realizar uma operação de “marcação” em grande escala? Será preciso dissolver a noção de nacionalidade e de cidadania e retornar à obsessão das origens, ou seja, à concepção de um sujeito ancorado na raça, no território e na etnia? A escrita de uma memória que enfatiza a vitimização deve prevalecer sobre a escrita da história, a qual pressupõe desprendimento da memória, sempre hagiográfica, sofredora, subjetiva e maniqueísta? É claro que não, mas esta é a tendência atual.
Como deve ter ficado claro, a meu ver tais projetos correm o risco de – em nome da justiça e da igualdade – fazer ressurgirem as desigualdades de maneira ainda mais dissimulada. Sou contra isso, apesar de achar que por todo lado, devido à globalização e à perda da soberania dos Estados em favor do vínculo religioso e da idéia de nação, estamos retornando – pelo viés de um progressismo semelhante ao higienismo de que falei atrás – às situações de selvageria das origens, da antiga ordem feudal, anterior ao Iluminismo.
E o mais paradoxal nesse assunto é o fato de a regressão vir da esquerda, a qual pretende sinceramente defender as minorias e definir as identidades em termos modernos, por meio de sabe-se lá qual “desenvolvimento pessoal”, ou do “direito ao sofrimento”. Não há como impedir que a experiência ocorra, mas ela produzirá a sua dose de catástrofes.
Percurso: Em seu diálogo com Jacques Derrida no livro De que amanhã…, a senhora diz estar convencida de que a força criativa da reflexão teórica psicanalítica “se exprime cada vez mais fora da comunidade freudiana”, com os trabalhos dos filósofos, literatos, historiadores, escritores e talvez cientistas. A senhora afirma que a esclerose das instituições analíticas é a principal responsável por isso. Poderia desenvolver um pouco mais essa idéia? Pois parece que, para os próprios psicanalistas, o futuro acena com sombras e com desvitalização teórica.
E.R.: Constato simplesmente que existe uma dissociação entre produções intelectuais e clínicas. Os psicanalistas produzem apenas textos clínicos e abandonaram a pesquisa erudita, que muitas vezes lhes parece apenas “universitária”. Sou particularmente sensível a esse assunto porque diz respeito à minha área de competência: todo o debate historiográfico sobre o freudismo ocorre hoje em dia com autores cada vez menos originários do redil psicanalítico, que lecionam nas universidades e normalmente não têm qualquer prática clínica.
Por outro lado, os psicanalistas não participam em absoluto dos debates filosóficos ou historiográficos. Não entendem do que se está falando; temos a impressão de que o horizonte deles se restringe à sua prática, que não têm mais tempo de ler ou pensar mais além de seu trabalho ou de sua comunidade. Em suma, os analistas estão se “deslacanizando”, mesmo quando são lacanianos. Apesar de tudo, constato que na França os lacanianos estão sempre mais mobilizados para os debates públicos que os não-lacanianos, os quais demonstram desprezo e uma suposta “neutralidade” quando convidados a sair de sua prática.
Percurso: A senhora tem acompanhado a produção psicanalítica brasileira? Há contribuições que gostaria de destacar? Em que medida no Brasil e em outros países da América do Sul se realiza o que a senhora chama de renovação do freudismo?
E.R.: Não acompanho suficientemente a produção latino-americana para me pronunciar a respeito, mas conheço um pouco dela pelas teses de argentinos e de brasileiros que orientei na França. Eu diria que a extraordinária vitalidade que observamos na Psicanálise brasileira é conseqüência de sua potência universitária. Ela é lecionada em todos os departamentos de psicologia. Aliás, essa potência deve-se também a seu ecletismo e à possibilidade de absorver tudo o que vem de fora. É isso a “brasileirice” da psicanálise, que por diversas vezes tive ocasião de aplaudir.
Na Argentina a situação é diferente: temos a potência universitária e o ecletismo, mas igualmente o fato de que o país teve “pais fundadores” (Pichon-Rivière, Langer, Garma etc.) e “dinastias heróicas”. Estas foram formadas ou por analistas locais, filhos de imigrantes, ou por imigrantes expulsos da Europa pelo fascismo. Ambos os grupos estiveram na origem de uma nova diáspora, que em seguida se dispersou por todo o mundo, principalmente por causa da ditadura. Isso quer dizer que os argentinos acabaram sendo como os judeus vienenses e alemães. No mundo inteiro, na Austrália, na Suécia ou na Espanha, eles se instalaram para dar novamente vida à aventura freudiana.
Não há dúvida alguma de que a renovação do freudismo no mundo só pode ser feita por meio de uma aliança entre a Europa, que agora inclui os antigos países comunistas, e o continente latino-americano. Isso porque tal aliança é a única que pode opor uma força política ao imperialismo norte-americano, hoje caracterizado pelo ódio a Freud, pelo cientificismo e pelo puritanismo.
Percurso: Transcorridos nove anos da primeira convocação dos Estados Gerais da Psicanálise5, feita por René Major em 1997 e que contou com a sua colaboração, que balanço a senhora faz do questionamento proposto, tendo em vista a realização do terceiro encontro, previsto para julho de 2006?
E.R.: Hoje em dia, não tenho receio de dizer que os Estados Gerais de Paris foram um sucesso fantástico, um momento único. Graças a uma espécie de fervor, devido em grande parte aos latino-americanos e ao discurso de Derrida, conseguimos reunir pessoas muito diversas, oriundas de 32 países. A reunião desenvolveu-se sob o signo da recusa de que a psicanálise pudesse se manter neutra frente à crueldade do mundo: ela não deve nunca mais, dizíamos, servir aos interesses das ditaduras. Deve se opor à pena de morte e abrir-se à modernidade, pensar a questão da homossexualidade, da ciência e do avanço das psicoterapias, ser o instrumento crítico das novas invasões bárbaras.
Mas a experiência não devia ter sido repetida. Os Estados Gerais são, em si, um momento único e não-renovável, simultaneamente um balanço e uma abertura para o porvir, uma espécie de passagem festiva entre o passado, o presente e o futuro: um instante fulgurante, arrancado à continuidade da história. Em suma, um puro acontecimento. Por esta razão, eu não quis ir ao Rio de Janeiro para o segundo encontro de 2003, o qual a meu ver foi um fracasso. Os que estavam unidos em Paris desuniram-se no Rio, em parte porque, depois do 11 de setembro, o clima político já não era mais o mesmo.
Aliás, com a exceção de Sérgio Paulo Rouanet, a escolha dos conferencistas principais revelou-se desastrosa, embora isso não se pudesse prever com antecedência. Toni Negri não esteve à altura da ocasião, e Tariq Ali disse coisas absurdas, fazendo a apologia dos islâmicos portadores de bombas, e comparando os israelenses aos nazistas e os palestinos aos judeus, como se fossem vítimas de um genocídio.
Há uma crítica necessária a fazer contra a política israelense, e é certo que os absurdos da política norte-americana são condenáveis. Mas tais comparações são completamente inadmissíveis. E lamentei que setecentos psicanalistas aplaudissem tal discurso! Houve ali um antiamericanismo virulento e primário, pouco compatível com qualquer forma de espírito crítico – o que mostra bem que a experiência não era mais oportuna. Pude discutir tudo isso com meus amigos brasileiros que organizaram esse segundo encontro, e acho que já não é mais o caso de ficar ruminando sobre o acontecido.
O terceiro encontro, previsto para julho deste ano em Bruxelas, foi cancelado por falta de quorum. Já passamos para outra coisa. Nesse sentido, areunião de Paris em julho de 2000 serviu como receptáculo para as interrogações daquele momento e como detonador de inúmeras outras.
NOTAS 1. Expressão com a qual se costuma designar a especificidade da cultura e da sociedade francesas. Ela se deve aos grandes fatos da história da França, que Mlle. Roudinesco menciona no corpo da entrevista. 2. A entrevistada refere-se aqui ao Le livre noir de la psychanalyse, Catherine Meyer, Les Arènes Edition, 2005, ao qual ela foi uma das únicas a produzir uma resposta num pequeno livro intitulado Pourquoi tant de haine, Anatomie du livre noir de la psychanalyse, Navarin, 2005. 3. O jornalista francês Édouard Drumont (1844-1917) escreveu em 1886 La France juive, livro de importância capital para todos os autores anti-semitas e de extrema direita desde o Caso Dreyfus (fim do século XIX) até o final do regime de Vichy (1944). 4. Neste caso, a expressão “exceção francesa” se refere ao papel que os intelectuais, e mais precisamente os filósofos, desempenham na cena política francesa desde o Caso Dreyfus. 5. Inúmeros psicanalistas de diferentes países e filiações responderam a essa convocação: organizaram-se grupos de trabalho e reflexão, com o objetivo de fazer um balanço dos cem anos de psicanálise, tanto no plano da teoria e da prática clínica como no das formas de ensino, transmissão e organização institucional.
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