Cartografias do Corpo – gesto & clínica do afeto, livro de Francine Simões Peres
Francine Simões Peres fala sobre seu livro recém-lançado.
Convidada pela Formação Freudiana a tecer um breve comentário sobre o meu livro Cartografias do Corpo – gesto & clínica do afeto (Editora PUC.Rio, 2015), – inspirado na minha tese de doutorado homônima – subitamente fui presenteada pela minha memória por uma lembrança do evento que participei promovido pela instituição, ainda no início dos anos 90.
À época, pouco ou nada falava-se sobre l enfant térrible de Freud. Mal sabia que Sándor Férenczi seria um dos principais inspiradores para o meu trabalho clínico e teórico, configurando o primeiro capítulo do livro, sob o título: A importância de Sándor Ferenczi no pensamento winicottiano.
Freud (1933) em texto sobre seu colega, aluno, amigo e analisando afirmou: “É impossível acreditar que a história de nossa ciência irá esquecê-lo”. De fato, apesar de, ou justamente em função dos motivos que levaram a publicação tardia de sua obra, mantida praticamente na clandestinidade, segundo Pinheiro (1995), ou no limbo, nas palavras de Birman, as ideias do pensador húngaro são tão atuais agora quanto nos primórdios da história da psicanálise.
Ao inventar novas formas de atendimento propondo uma elasticidade na técnica para lidar com os chamados casos difíceis, Férenzi nadou contra a corrente mais tradicional da psicanálise, a ponto de ser chamado por colegas de psicótico herege, eventualmente tomado por ideias delirantes. Contudo, não morreu na praia.
A valorização afetiva do corpo, do gesto e do ambiente na experiência emocional e sua repercussão clínica; traduzida na importância dada ao indizível sob a égide do que chamo de gestos imperceptíveis, é uma linha de fuga no que se refere a técnica clássica calcada, em última análise, na representação e na interpretação. Interpretar, jamais: Experimente!
Sem deixar de mencionar a liberdade que se permitia para inventar diferentes procedimentos no cuidar, reconhecendo suas limitações, êxitos e fracassos. De outro modo, seria encarnar a hipocrisia profissional ao não perceber seus próprios erros. Tais quais as falhas constitutivas da subjetividade inerentes ao ambiente materno, delas se utilizava como um rico material a ser trabalhado no processo de análise, que tinha como objetivo precípuo minimizar o sofrimento do paciente, eventualmente em estado de regressão.
Dando continuidade a importância do estado de regressão e de que “não se analisa com a ‘cabeça’ mas com o ‘coração’, como pontua Kupermann com bastante propriedade, ao citar o Diário Clínico na orelha das minhas cartografias, no capítulo seguinte, Donald Winnicott: um pensador nômade, insisto na argumentação monista dos processos de subjetivação, que refuta convicções, “sobretudo aquelas que estabelecem fronteiras entre interioridade e exterioridade, sujeito e objeto e, para nós a mais cara, mente e corpo” (PERES, 2015 :92)
No terceiro capítulo: Contribuições filosóficas para fazer o corpo falar, “reconhecemos as proposições que restituem ao corpo a dignidade perdida junto ao pensamento filosófico centrado no primado da representação” (KUPERMANN), com os filósofos da diferença: Gilles Deleuze, Félix Guattari e José Gil. O que é um corpo? É uma respiração que fala.
O objeto de discussão adquire território na interface entre corpo, psicanálise e política no cenário contemporâneo, onde somos solapados não só por padrões de beleza (incluindo aí o sentimento de felicidade constante e eterna juventude), como também, atravessados massivamente pelas tecnologias digitais e novas formas de afetos virtuais.
Alguns conceitos filosóficos nos serviram como intercessores e suporte para dar conta da questão que permeia todo o livro: o que pode um corpo nesse jogo de forças?
“Seja lá o corpo qual for, dele se poderá esperar sempre – ao menos – a insurgência de gestos impulsionados pela pletora de afetos que é capaz. A aposta da psicanálise, aqui corroborada por Francine, é muito mais pela via de uma elaboração do que podem os corpos desde suas potências – incluam-se entre essas potências as dimensões dos afetos – do que necessariamente pelas catalogações sintomáticas e suas modalidades de controle normativo. Nesse sentido é que o fazer analítico tende a se aproximar de práticas artísticas – sem com elas se confundir – de maneira tal que o ofício de um analista, sobretudo junto a seus pacientes, seja marcado por seus gestos.”
(Prefácio de Carlos Mário Alvarez)
“Dessa maneira, ao articular as concepções psicanalíticas referidas à ética do cuidado com a filosofia da diferença, Francine Simões Peres demonstra que analisar com o ‘coração’ é disponibilizar-se afetivamente ao corpo a corpo para a qual a clínica psicanalítica nos convoca.”
(Daniel Kupermann)
Em relação à escolha da capa do livro, finalizo por ora com as palavras da comissão editorial:
Michelangelo produziu umas esculturas que hoje são chamadas de non-finito. São obras inacabadas de grande beleza e força, partes do corpo humano e partes da pedra bruta. Mostrando como o corpo é inacabado, como ele se transforma, nasce de uma pedra bruta e tenta ganhar a liberdade.