Adolescência, depressão e escola – Algumas reflexões
Por Alexandre dos Santos Costa
ADOLESCÊNCIA, DEPRESSÃO E ESCOLA
Algumas Reflexões
Fui convidado a debater sobre o tema depressão na escola e tal convite deu-se a partir da relação que este sofrimento possa ter com alguns comportamentos ligados à tristeza, apatia, isolamento sendo o suicídio a expressão extrema dessa experiência.
Notícias desse tipo de sofrimento nos chegam com mais frequência hoje em dia. Notamos, no entanto, a construção deste diagnóstico a partir de várias formas de mal- estar, tristezas, recusas em acatar projetos de vida, de conviver com este ou aquele grupo etc., que podem estar presentes na depressão, mas que, por si só, não são indicativos de adoecimento psíquico.
Corre-se o risco, nesses casos, de medicalizar estados de humor ou desconsiderar quadros depressivos que, por sua gravidade, precisam de atenção diferenciada.
Mas porque o diagnóstico de depressão funciona como uma espécie de cabide, no qual se penduram vários estados de humor que através desse diagnóstico deixam de ser sofrimentos inerentes à dinâmica da vida para adquirem status de psicopatologias?
Uma pista surge quando consideramos o sentido que sofrimentos cotidianos, através deste diagnóstico, podem obter. Entendemos que através do diagnóstico de depressão, veiculado amplamente pela mídia, uma dor ou sofrimento comum, encontra sentidos e respostas que justificariam o uso de medicações e/ou acompanhamentos destinados a psicopatologias. A perda de um amor, de um sonho não alcançado, de frustrações várias passa a ser reconhecido como parte de um grave processo depressivo.
Do sofrimento comum, inerente à vida, a uma psicopatologia que poderia ser “curada” através da medicação ou terapias; como se a vida pudesse ser esvaziada de suas dores inerentes. Transformando as dores que atravessam o processo de viver em doenças que poderiam ser eliminadas, podemos criar a expectativa de que é possível esvaziar completamente a dor da vida, bastando para isto um diagnóstico preciso e remédio adequado.
Mas o que é uma dor psíquica?
Conseguimos escapar de uma luz muito intensa que nos cega ou de um barulho estridente, protegendo os olhos da luz com a mão ou tampando os ouvidos. Podemos dizer que esses estímulos vêm de fora do psíquico, do mundo, e assim, podemos reconhecê-los empreendendo ações de fuga.
Se nos distanciamos do estímulo externo aversivo através de uma ação de fuga, não conseguimos nos livrar do estímulo interno da mesma maneira. Este estímulo atua como força ou excitação que evolui desde o corpo para constituir o psiquismo. Esta força nos chega de modo estranho; uma excitação que não cessa através de um ato como aquele que empreendemos contra a luz intensa. Causa prazeres e desprazeres e continua a insistir sem que nada possa ser feito para eliminá-la; às vezes, tanta é a insistência, que ultrapassa a sensação de desconforto.
Essa dor pode surgir quando esta excitação interna alcança níveis que impedem sua transformação ou elaboração. O sonho, por exemplo, seria um modo de elaborar a excitação, mas, às vezes, nem as imagens oníricas conseguem agenciar essa força, que permanece assim pulsando para mais além do que somos capazes de dar conta.
Aprendemos, no entanto, a lidar com ess excitação desde que nascemos. Paradoxalmente, ela nos ameaça e nos obriga a constituir instrumentos para lidar com ela. Em outras palavras, vivemos sempre meio desamparados frente ao mundo interno e suas excitações, como tento descrever a seguir.
Desde o nascimento somos obrigados a conviver com uma série de abandonos e perdas do que nos foi mais precioso e fundamental. Dentre elas, alguém que geralmente exerce a função mãe. Ela, que através de seu olhar, sua voz, seus toques, sua atenção, força e desejo pode nos suportar, em algum momento, deverá nos deixar um pouco sós para que possamos existir de modo mais autônomo. Esta pessoa que nos ajudou a sermos o início do que seremos deve nos deixar perdê-la suportando nossos pedidos, nem sempre educados e gentis, de que ela fique e nunca vá embora.
Outras perdas se darão e com o tempo nos instrumentalizamos para poder perder, mas sempre de modo incompleto. Sobra desejo, nos fazendo sonhar que quem se foi nos chegará como antes, restaurando o que supomos ter existido e sido bom.
Entre perdas e reencontros construímos o nosso mundo.
Quando nos desencontramos dos objetos e pessoas levamos deles alguma coisa em nós. Nosso mundo é constituído de restos do que pudemos encontrar, são lembranças deste estranho mundo com o qual nos encontramos e nos construímos; marcas do que se passou com a gente e que tornam esse mundo que habitamos e que nos habita menos estranho, um pouco mais familiar.
O processo que trata de perdas e ganhos chama-se luto.
Ficamos tristes quando perdemos algo muito importante (pessoa, trabalho, amigo etc.) e guardamos nossa impressão do que se foi, construindo-o em pedaços dentro de nós, torna-se parte de nossa alma. Mas, para que possamos nos separar do que nos é mais caro, advertimos, tendemos a odiá-lo. Este afeto é o que permite tirarmos de nossa carne o que a ela se amalgamou quase como se tornando uma coisa só conosco. Assim, há uma fusão e desfusão do amor e ódio nesta dinâmica da separação.
No luto nos encolhemos, ficamos tristes e reservados. Os temas de nosso interesse são monocromáticos, a não ser os detalhes relativos a quem se foi. Furtiva e inconscientemente, quase sem querer, tornamos esses detalhes mais intensos e coloridos. E assim, podemos nos separar do que nos é mais importante.
Notem que todo este processo comporta perdas, ganhos, dor e sentidos. Conseguimos construir, mesmo com dor, motivos que nos permitem deixar ir ou mandar embora. Dentre eles a participação ativa daqueles que cuidam desse adolescente, tratando para que estas rupturas procurem uma sintonia com o que ele pode suportar, considerando sua capacidade de ficar só.
Aprender a ficar só com os outros, implica a construção de diferenciações que possam circunscrever o que acontece conosco, no caso do adolescente, do que acontece com seu corpo que muda desproporcionalmente assim como seus ideais que não se alinham neste ou naquele modelo, com o sexo e com os chamados da sociedade que antes parecia estar afinada com ele, mas que agora não responde aos seus apelos prontamente.
Observem que as decepções, dor e sofrimento estão presentes neste processo de constituição do ser humano, mas em nenhum momento se configuraram um sintoma depressivo.
Seus pais, muitas vezes reféns de nossa cultura atual com suas ferozes exigências, também ficam desamparados. Como proteger seus filhos se estão tão desprotegidos?
E a escola? Como os pais, também é submetida amesma demanda por resultados imediato, às vezes, desconectado da realidade que experimenta com seus alunos. A relação do professor com seus alunos comporta uma singularidade que nem sempre cabe nas diretrizes que o Estado constrói para ele. Assim como os alunos a escola muitas vezes está desprotegida e só.
Desta maneira, também (mas não só) em função do desamparo daqueles que antes o protegiam, pode acontecer que a solidão do adolescente seja excessiva. Surpreendido pelos chamados de seu corpo, agora meio estranho, para o qual deve criar sentidos que permitam familiarizá-lo e, também, pelo ambiente, incluindo seus pais e sociedade, que o chamam ao cumprimento de expectativas, o adolescente tem que encontrar um tempo para si, para que possa abandonar pouco a pouco suas certezas e testar aquelas que puder organizar em meio à turbulência que experimenta. Mas, às vezes, ele não encontra/constrói seu tempo. Seus pais, amigos, sociedade e escola nem sempre percebem esse movimento do adolescente ou não se dispõem a serem encontrados, digeridos e transformados por este adolescente. Assim, sem que se note este adolescente se consome. Os laços com o ambiente, que poderiam amparar seus saltos, ideias e afetos desconjuntados em plena ebulição, se fazem frágeis.
Se ele não pode testar-se construindo/destruindo a si e ao outro, e assim produzir seus territórios íntimos e confiáveis, passa a destruir a si mesmo. A força que ele precisava validar no encontro com o mundo que o envolve, num diálogo entre as entranhas deste mundo e as suas próprias tripas; esta força, voraz e passional, se volta contra ele, passa a consumi-lo e a impor cada vez mais desligamentos de tudo o que este adolescente pode construir para ampará-lo. O íntimo passa a não dizer mais nada de tanto vazio que é. Esse seria o caso de uma depressão para qual devemos estar atentos. E esta atenção nos implica radicalmente, pois ao abordar o adolescente, temos que nos disponibilizar, como nos ensina um bom clínico de almas e corpos, o psicanalista húngaro Sándor Férenczi: “a senti-lo dentro de nós”
Uma abordagem que não considere a empatia transforma o adolescente, já refém de seus afetos mais sombrios, em mero objeto sobre o qual se testam fórmulas e remédios reparadores de felicidade.
Notem que este processo que pode gerar a depressão se dá entre vários atores e não somente com o adolescente. Neste jogo de forças, o adolescente/aluno é o pólo mais frágil.
E a escola, como entra neste jogo?
Através da vocação para ensinar a escola propõe mundos novos. A didática é o instrumento que tentará veicular e organizar estes mundos com aqueles do adolescente. Educar, dizia Freud, é um ofício impossível, tal como psicanalizar e governar. Mas a impossibilidade que Freud acentua é positiva. Ela nos adverte que o educador deve considerar os excessos que produz em seu ato, que se negam a ser educados, pedagogizados. São com esses excessos ou restos que a escola deverá dialogar na lida com o adolescente, criando condições mais propícias à criatividade, expansão e autonomia que vem se contrapor à depressão desvitalizante.
Os restos aos quais me refiro, longe de serem lixo, são partes deste adolescente que escapam às expectativas e projetos pedagógicos da escola para com ele. Os restos são a deriva necessária que aponta para aquilo que a escola não previu e jamais poderá prever em seus projetos. Esse resto é o que não se conforma, que ainda nem forma tem, mas que precisa ser acolhido para que alguma possa criar.
Assim, na contramão de uma dinâmica que venha destacar quem sofre demais na escola, entendo que a escola deve se tornar um ambiente que aceite o desafio de se inventar junto com o educando, se dispor a receber e suportar suas desproporções. Esta disposição permitiria que ela se inserisse junto com a família do adolescente, acompanhando-o em suas transformações. Ressalto seu papel junto à família, uma vez que esta vem sendo tragada cada vez mais intensamente pela sociedade que desconsidera sua função protetiva. Adultos, sem outra opção, desprotegem seus filhos que são reabsorvidos e medicalizados por esta mesma sociedade que deveria protegê-los. Todos catalogados com seus diagnósticos, agarrados aos sentidos oferecidos pela indústria farmacêutica e distantes cada vez mais de qualquer gesto que protagonize a vida. A tristeza deve ser rapidamente reparada e um estímulo à mania e aceleração instaurada. O adolescente deve ir rápido, ele deve ser livre, atirado, hipersexualizado e feliz, o tempo todo. Para os que sucumbem, vários dignósticos prêt à porter e suas respectivas medicações.
Alexandre dos Santos Costa
Psicanalista
Psicologo – NIAP