Convivência em tempos do Covid 19
Por Alexandre Costa
Nesses tempos retomei a leitura do texto de Freud “Mal Estar na Cultura (1930)”. Um texto sombrio, dizem alguns comentadores, escrito próximo a queda da bolsa de Nova York e pouco antes da ascensão do partido hitlerista. Esse trabalho fala principalmente de como o humano lida com a destruição que o habita. Esse texto segue a proposta surgida em “Além do Principio de Prazer” (1920) onde a pulsão de morte é apresentada e nos dá acesso aos modos de destruição compulsivos do humano. Assim, se o humano cria grupos e laços sociais também os destrói. A vida seria então tensão entre movimentos conjuntivos e disjuntivos. Mistura desde a origem e ela é abalada de vários modos, um deles se dá quando criamos através da sublimação os grupos aos quais pertencemos.
Para que tal se dê, abrimos, inconscientemente, mão de nosso desejos que buscam uma satisfação imediata, através do adiamento necessário a que outros desejos possam se presentificar. Abrimos mão de nosso modo mais imediato de afirmação de nossa vida mais pungente e egoísta visando formar laços (que devem oferecer em seu horizonte a recuperação daquilo que se abriu mão, é o que Freud chama de Ideais do Eu). Abrimos mão também, principalmente, de nossa destrutividade mais radical. Caso assim não fosse os laços seriam destruídos ou não iriam se formar. Se os ideais permitem uma compensação para o adiamento de nosso desejos, o seja, construímos adiante possibilidades para o reencontro com o que perdemos, no caso da destrutividade o mecanismo é outro.
Freud nos fala que ao abrirmos mão de nossa destrutividade voltamos a encontrá-la como algo dirigido a nós mesmos. Dito de outra maneira, ao abrirmos mão da destrutividade contra o outro tendemos a nos aniquilar. Um dos modos de lidar com essa destrutividade ameaçadora ao grupo e a nós é deslocá-la para outro grupo que “merece” recebê-la. Odiamos outro grupo e para ele veiculamos a destrutividade radical que nos ameaça. Nosso grupo se faz então contra o outro. É o que Freud conceitua como narcisismo das pequenas diferenças.
Como esses trabalhos de Freud podem nos ajudar a encontrar modos de convivência frente à ameaça do vírus Corona?A questão da destrutividade parece saltar à frente. O vírus destrói silenciosamente, tentamos encontrar remédios e vacinas, mas até o momento a evitação é a única maneira de lidar com ele. Não se contaminar. A evolução do estrago que o vírus realiza também varia bastante. Quadros mais graves advindos de organismos que pretensamente reagiriam melhor nos indicam que não há um protocolo seguro. Tenta-se reverter o quadro de destruição promovida pelo vírus Corona, corremos atrás de um vírus que destrói nas sombras e o para o qual não temos um sistema de laços terapêuticos que permitam incluí-lo no campo das relações mais seguras entre adoecimento e tratamento. Enfim, lidamos com uma destruição que alcança a todos e nos chega de modo invisível.
Com essa destruição invisível que ameaça o individuo e o grupo desde seu interior lidamos ao modo narcisista das pequenas diferenças, buscando encontrar em outrem o motivo para tamanho mal estar e angústia. Ele será o culpado e por isso podemos dirigir a ele toda nossa agressividade destrutiva. Mas, agora estão todos, o planeta inteiro, sujeito a essa pandemia. Destruir o estrangeiro não vai ajudar, a não ser que se destrua o mundo todo. Assim, outros modos de escoamentos para essa paradoxal destrutividade que nos constitui, que nos habita e ao mesmo tempo nos ameaça, serão necessários. A tolerância entre todos, que em outros tempos situava-se quase como um projeto impossível, agora, uma vez que as saídas usuais de destruição ao vizinho não se sustentam, pode ser retomada. A tolerância escapa às regularidades da razão, do normal e patológico, do são e do louco. A tolerância é antes a afirmação em nós daquilo que vem…
Alexandre Costa é Membro Titular e Coordenador de Ensino da Formação Freudiana