Cartas de Sigmund Freud a Arthur Schnitzler
Cartas de Sigmund Freud a Arthur Schnitzler.
Carta 1
Caro Dr. Schnitzler,
Há muitos anos estou ciente da ampla harmonia que existe entre as suas opiniões e as minhas sobre muitos problemas psicológicos e eróticos; recentemente encontrei até a coragem de acentuar expressamente essa harmonia (Fragmento de uma Análise de um Caso de Histéria, 1905). Sempre me perguntei espantado como o senhor havia chegado a este ou aquele detalhe de conhecimento secreto que eu havia adquirido mediante aturada investigação do tema, e finalmente cheguei ao ponto de invejar o autor que até então admirava.
Agora o senhor pode imaginar como fiquei satisfeito e eufórico ao ler que o senhor também tem-se inspirado em meus escritos. Quase lastimo que tive que alcançar os 50 anos para ouvir algo tão lisonjeiro.
Seu com admiração, Dr. Freud.
(Viena, 1906)
Carta 2
Agora o senhor também completou 60 anos, ao passo que eu, seis anos mais velho, estou chegando ao limite da vida e espero breve ver o fim do quinto Ato dessa comédia algo incompreensível e nem sempre divertida. Se eu tivesse conservado um vestígio de fé na “onipotência dos pensamentos”, não hesitaria hoje em mandar-lhe votos os mais sinceros e cordiais para os anos que o esperam. Deixarei este gesto ingênuo para o grande número dos seus contemporâneos que se recordarão do senhor no dia 15 de maio.
Mas farei uma confissão que, para o meu bem, devo pedir-lhe que não transmita nem partilhe com amigos nem com estranhos. Sempre me atormentei com a pergunta sobre a razão por que em todos esses anos nunca procurei conhecê-lo nem conversar com o senhor (ignorando é claro, a possibilidade de que a minha tentativa não fosse bem recebida pelo senhor).
A resposta contém a confissão que me parece íntima demais. Acho que evitei o senhor por causa de uma espécie de relutância em conhecer o meu sósia. Não que eu me incline facilmente a identificar-me com outrem, ou que pretenda fazer pouco da diferença de talento que me separa do senhor, mas todas as vezes em que me absorvo profundamente nas suas belas criações pareço sempre encontrar sob uma superfície poética os mesmos pressupostos, interesses e conclusões que alimento. Seu determinismo, assim como seu ceticismo – o que em geral se considera pessimismo -, sua preocupação com as verdades do inconsciente e com os impulsos instintivos do homem, a dissecção que o senhor faz dos dogmas em que se fundem as convenções e a cultura, a insistência das suas reflexões sobre a polaridade do amor e da morte, tudo isso me comoveu com inquietante familiaridade. (Em livrinho chamado Além do Princípio do Prazer, publicado em 1920, procurei revelar o Eros e o instinto de morte como as forças motrizes cuja interação domina todos os mistérios da vida). De modo que criei a impressão de que o senhor sabe, pela intuição – ou, antes, em virtude de minuciosa auto- observação -, tudo o que eu descobri mediante laborioso trabalho em outras pessoas. De fato creio que, fundamentalmente, a sua natureza é de um explorador das profundezas psicológicas, honestamente imparcial e destemido como ninguém e que, se este não fosse o seu modo de ser, seus dons artísticos, seu talento para expressar-se e seu poder criador teriam tido toda a liberdade, transformando-o em um escritor de grande atração para o gosto do povo. Minha preferência é pelo explorador, porém perdoe-me por desviar-me para a psicanálise: não posso evitá-lo. E sei que psicanálise não é o caminho para se conseguir popularidade.
Cumprimentos muito sinceros do seu Freud.
(Viena, 1922).