A escuridão do sol do meio-dia: o cinema de Luis Buñuel
Thais Klein
As luzes se apagam: movimento, imagem e sons se entrelaçam. A narrativa não é linear, o tempo está fora dos trilhos dos relógios, espaço e tempo metamorfoseiam-se. Não detemos nenhum poder sobre as imagens que se desenrolam na nossa frente, a experiência é de fascínio e perturbação. Como no buraco da Alice, somos convidados para uma travessia na qual nos tornamos ao mesmo tempo personagem e espectador. Uma janela se abre, uma janela para o inconsciente, uma fresta no meio da escuridão: sonho ou cinema? Foi em 1900, mesma data de publicação da obra seminal de Freud sobre os sonhos, que nasce Luis Buñuel, ao meio-dia.
A contemporaneidade da sétima arte e da psicanálise não resulta propriamente em afinidade – anos antes, em 1895, ano também da publicação de Estudos sobre a histeria com Breuer, temos registrada a primeira exibição cinematográfica. É interessante relembrar uma passagem de Jones sobre a experiência no Hammerstein’s Roof Garden nos Estados Unidos ao lado de Freud e Ferenczi. Nas suas palavras: “Ferenczi, com seu jeito infantil, se mostrou muito entusiasmado. Freud, por outro lado, não fez mais do que divertir-se tranquilamente. Era a primeira vez que ambos assistiam a um filme.” (p. 56). A falta de entusiasmo do pai da psicanálise anda de mãos dadas com o cerceamento do infantil e potência, por vezes traumática, do estranho familiar na sua própria descoberta. O médico vianense parecia ter predileção pela sombra fornecida pelas artes clássicas, esculpidas na pedra como na escultura – o analista contido, que atua per via de levare, não estava disponível para o sol do meio-dia.
Mais tarde, a sombra revelou a Freud a estranheza do duplo, a externalidade potente da imagem, o rasgo mortífero na ilusão de unidade – talvez não tenha dado tempo de Freud vislumbrar a mesma potencialidade do espelho nas obras cinematográficas. Mas isso não passou incólume àquele que nasceu junto com a revelação das imagens oníricas, força de atração que pulsa para além de sua interpretação per via de levare. Para Buñuel, o fascínio pela morte parece marcar o encontro com a imagem: uma de suas primeiras lembranças autobiográficas consiste em um burro putrefato em uma valeta. O entrelaçamento entre imagem e morte de sua infância na Espanha não é ofuscado pela sua estadia na reluzente cidade das luzes nos anos 20. Paris entrava em contato com os recônditos da alma longe das armadilhas da medicina. Em 1924, Breton, um dentre aqueles chamados de surrealistas, aos quais Freud tinha quase cem por cento certeza de lhes atribuir o adjetivo de idiotas, publica O manifesto surrealista – em 1925, Buñuel muda-se para Paris. Com Frederico García Lorca e Salvador Dalí, colegas de residência, as luzes de Paris pareciam servir de aporte para iluminar a dimensão surrealista de uma lógica que aponta para os limites da razão Iluminista – o olho que tudo vê é atravessado impiedosamente por uma navalha. É justamente esta a cena de seu primeiro filme, Um cão andaluz (1929), em parceria com Dalí – a associação livre da empreitada surreal não se deixava levar pelos contornos da representação de imagens racionalemnte justapostas. A potência da externalidade, a dimensão mortífera, consistia em um dos principais aspectos da intenção de alcançar o “automatismo psíquico puro, pelo qual propõe-se exprimir, tanto verbalmente, tanto pela escrita, tanto por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento.” (Breton – em O manifesto surrealista). O método utilizado por Buñuel e Dalí em 1929, intitulado “cadáver esquisito” (ou mais bem traduzido como cadáver saboroso), constrói sem uma unidade autoral uma narrativa que subverte a ordenação racional de uma representação imagética apaziguante, frases se formam na justaposição de palavras: “o cadáver esquisito beberá o vinho novo”. O recurso imagético do cinema, assim como no sonho, permite a invenção do tempo e do espaço, engendra outras configurações entre subjetividade e objetividade.
Os entrelaçamentos entre exterioridade e interioridade marcam não só a montagem, mas também as temáticas do longa dirigido por Buñuel, mais uma vez em parceria com Dalí, a Idade de Ouro (1930). Problemáticas como o amor romântico, a burguesia e a religiosidade cristã não são aprisionadas pelo discurso manifesto que trabalha a favor da moral e dos ideais progressistas da Europa do começo do século XX: as luzes da civilização, o sol do meio-dia, é permeado pela escuridão.
A potência subversiva das imagens que não cedem aos caprichos da cronologia, do maniqueísmo e do engodo de um sentido unívoco, trabalhos, como nos mostrou Freud, de um constante polimento de censura, não é bem-vinda em regimes totalitários. Buñel, durante o regime ditatorial de Franco, dirigiu-se para o outro lado do oceano, rumo aos Estados Unidos e à terra na qual os mortos são celebrados, o México. Mas como bem nos indicou o pai da psicanálise, a censura não é capaz de conter a potência das formações do inconsciente: “Agradeço à censura franquista por ter proporcionado um final melhor a Viridiana”. Afirmou certa vez Buñuel referindo-se ao veto que o filme de 1961, trama centrada sobretudo na parceria espúria entre cristianismo e repressão sexual. Como no trabalho onírico, a censura franquista engendrou a criação de outras imagens que guardam sentidos subversivos. Viridiana acabaria por ganhar a Palma de Ouro em Cannes. A escuridão não é sem o sol do meio-dia.
“Ateu, graças a Deus”, Buñuel prosseguiu colocando em tensão os polos aparentemente opostos e a década de sessenta foi marcada pelos longas O Anjo Exterminador (1962) e A Bela da Tarde (1967). Nos anos 1970, recebeu o reconhecimento da indústria cinematográfica, para em breve ser expulso de Hollywood. Fato que não impediu sua indicação a cinco prêmios da academia norte americana (o Oscar) entre 1971 e 1978, faturando a categoria de Melhor Filme Estrangeiro em 1973 por O Discreto Charme da Burguesia.
A obra de Buñuel atualiza as potencialidades da sétima arte ao sustentar o estranhamento familiar inerente à linguagem imagética – a linearidade do pensamento consciente não é garantida no engodo da imagem. Seu último longa, Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977), também indicado ao prêmio da Academia, convida os espectadores a atravessarem a transparência do especular – nada melhor do que o impulso alavancador mancomunado com a morte, lampejo fugidio do sol do meio-dia em meio à escuridão, que chamamos de desejo, para coroar as reverberações infindas das portas abertas pelo cineasta. Convidamos vocês a atravessar essa experiência conosco – afinal, como afirma Merleau-Ponty, um filme não é pensado e, sim, percebido.