Multiplicidade e Ambivalência da Autenticidade
Multiplicidade e Ambivalência da Autenticidade
Por: Chaim S. Katz
No livro dos sonhos, Freud escreve que “as moções inconscientes de desejo aspiram manifestar-se também durante o dia, e os fatos da transferência bem como o das psicoses nos ensinam que elas o fazem através da via do sistema pré-consciente até a consciência, a fim de dominar o controle da motilidade”. As moções inconscientes de desejo têm sua fonte na vida infantil, ensinou. Contudo, não se trata das vivências infantis em geral, de experiências vividas (Erlebnisse) quaisquer, mas daquilo que na infância é alvo de recalque. Ou seja, o autêntico infantil inconsciente se produz como sistema e diz respeito a como esse sistema se organiza, através do modo do recalque, por diferença com os sistemas pré-consciente e consciente. Lembremo-nos que Freud insiste que é a evitação do desprazer que dispara o mecanismo de recalque.
Podemos pensar, com Freud, que existe um “primeiro eu”, um eu incipiente ou primário, que é inconsciente e corporal, e depende ou deriva da formação dos primeiros anos da infância através do processo de recalque, enquanto um “eu secundário”, que não se restringe ao inconsciente, corresponderia a um “eu polido”, eu urbano (polis, cidade, urbe) e é uma instância de controle do infantil.
Existe um quantum de afeto diferenciado referente a cada registro e cabe ao (que podemos chamar de) “eu secundário” domesticar o (isso que podemos chamar de) “eu primário” -que é infantil na sua dinâmica, econômica e tópica- através dos processos de inibição.
Claro, os freudianos sabemos que se trata sempre do afeto da sexualidade, pois desde sempre o corpsiquismo está à busca de satisfação. Tal chamada “primeira” experiência de satisfação não se detecta pelos ou nos regimes empíricos da sensibilidade, ela se marca fantasmaticamente, de modo autêntico e a ser permanentemente trilhado ou retrilhado. Daí o se repetir das pulsões, construindo objetos impossíveis de finalização, obrigados à repetição.
Na Traumdeutung, Freud elabora uma organização desejante recalcada como determinadora das pulsões, regulada através de processos, já que ele parece recusar, neste momento, o conceito de que as pulsões ou instintos, em sua forma “bruta”, por sua ocupações (Besetzungen) insistentes e permanentes, também constituem o sistema ou organização inconsciente.
Pois bem, mas podemos aprender que, nesse momento da Traumdeutung, Freud também pensa a emergência do inconsciente como sendo uma potência e manifestação do individual, desde o indivíduo, um indiviso, não divisível. Tal individual nasce (teoricamente, no modo freudiano de teorizar) com e como um corpo próprio e particular, simétrico aos corpos examinados-idealizados pela Fisiologia médica da época.
Por exemplo, a transferência, o “conduzir-para-além-de”, über tragen, viria depois na formação e emergência de tal indivíduo. O indivíduo, que investe desde sempre, só ficaria disponível para transferir depois de (se) experimentar no modo infantil recalcante. E tal indivíduo será teorizado como corpo individual, com afetos e representações individuais, representações e afetos que evoluiriam simultaneamente, desde um corpo nascido da mãe própria, mãe da geração e da reprodução, pertencendo a uma individualidade corporal.
Elaborando assim a emergência do inconsciente como corpo próprio e do corpo próprio como inconsciente, Freud postula o “ser infantil”, de um modo específico. Ou seja, o criador da teoria psicanalítica dos sonhos se vê levado a pensar o infantil não apenas enquanto inconsciente em sistema mas como inconsciente de experiências infantis recalcadas desde uma experiência individual de experimentar. Ele elabora a “constituição” do infantil como produto de experiências cronológicas da criança individualizada, experiências vivenciais assujeitadas ao recalque. Na passagem, na transmutação das pulsões para a ordem do recalque. Aí estaria a autenticidade.
Vejamos um exemplo, importante. Freud acompanha e elabora um conhecido conto de Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês de quem agora se comemoraram duzentos anos de nascimento (nasceu em Odense, pequena cidade perto de Copenhaguen ou Copenhague, em 02/04/1.805), chamado “As novas roupas do Imperador”. Trata-se, em resumo, da história de um Imperador preocupado unicamente com suas roupas e vestimentas, a ponto de seus súditos dizerem dele, permanentemente: “O Imperador está no guarda-roupa”. E que um dia sabe da visita ao seu reino de dois homens (impostores certamente) que apregoam fazer as mais maravilhosas roupas existentes, mas que só seriam visíveis para os homens que não fossem idiotas e que exercessem adequadamente suas atividades.
O Imperador, além de só se preocupar com seu guarda-roupa, fica fascinado com a dupla qualidade que as vestimentas propiciariam ao seu usuário e convoca os dois homens para fabricá-las, dando-lhes bastante dinheiro para que teçam as vestes. Os dois impostores, segundo o conto, “tecem” o invisível, pois tal tecido é inexistente, e eles (os ditos impostores) ficam com o dinheiro e o ouro recebidos.
As roupas ficam prontas e o Imperador as veste, mas se vê nu diante do espelho. Para não se enquadrar, ele mesmo, nas qualidades negativas de idiota e displicente ou incompetente em sua atividade, ele “vê” as roupas e comenta que são as mais maravilhosas que já conheceu. Chama um ministro querido para admirá-las, mas também esse seu velho e favorito ministro não vê tais roupas; contudo, também ele não querendo passar por idiota e displicente, confessa seu espanto positivo diante da visão de tal maravilha. Do mesmo modo que o povo em geral, que está pronto para ver tais vestimentas maravilhosas, alcançado ou fundado que é pelas formidáveis notícias.
As vestes ficam prontas, leves como teias de aranhas (Es ist so leicht wie Spinnwebe), e o Imperador se põe a desfilar com tais adereços, vestido de cueca mas usando a roupa invisível.
O povo assiste encantado. Contudo, enquanto o Imperador desfila, “diz finalmente uma pequena criança: ‘mas ele não está vestido’. ‘Ouçam a voz da inocência’, diz seu pai, que cochicha aos outros o que a criança disse”. Os populares, aqueles mesmos que antes não queriam passar por idiotas ou displicentes por não enxergarem as maravilhosas vestes, ecoam a voz da criança e o comentário de seu pai. O Imperador reconhece sua tolice e volta ao castelo envergonhado, desnudado de verdade. Na seqüência, os castelões procuraram pelos impostores, “que já não estavam ali”, fugiram (se invisibilizaram: nem sempre o invisível é invisível desde o início…).
O que Freud buscou em tal conto, que interpretou como se fosse um sonho, é a confirmação da sexualidade infantil, que se manifesta repetidamente e de modo incessante, bem como a postulação da curiosidade sexual infantil, que permanece na maturidade. Infantil destinado à repetição e que não se cala diante da ordem do recalque, que, diferentemente da dialética de Hegel, não se supera em etapas posteriores e superiores. Além disto, Freud postulará sua semelhança com a estrutura dos sonhos, o que nos dá outra dimensão, intensiva, dos sonhos.
Acurado observador, Freud nota que o conto de Andersen é uma variação de um conhecido e popular conto de fadas e não um “original”. O que o interessa é o motivo ou o tema de tal conto, que ele interpreta como um sonho ou paralelo a um sonho, que estaria -em outra versão- versificado por Ludwig Fulda em 1893.
Na Traumdeutung, Freud postula que os sonhos se significam, só ganham significado quando narrados pelo próprio sonhante, pois somente um próprio (Selbst, eigentlich, “o si mesmo”, autos, que significa no grego arcaico o que é “feito pelas suas próprias mãos”) pode delinear e ajudar a definir o quadro, o ambiente psíquico onde eles se tornam significáveis. Ou seja, se sua autenticidade requer a regressão à infância, ela deve ser “acrescida”, precisa da narrativa e das associações do sonhador autos, ele mesmo. Na primeira pessoa e desde seu corpo próprio individual, do narrador.
Inicialmente, ao começar a construir a psicanálise, Freud postulou “a identidade da histeria em todos os tempos e lugares”, ou seja, afirmou a imanência e pertinência do aparelho psíquico, em quaisquer épocas ou eventos.
Mas, concomitantemente, impôs a presença do narrador e a narrativa desde sua voz, a expressão em “voz própria”. Foi assim com as chamadas histéricas, que deveriam dirigir o caminho para sua cura através de suas narrativas, desde suas próprias experiências ou experiências próprias. Recuperar a história perdida, suas reminiscências, ensinou Freud, só seria possível através da narração em torno do que é esquecido pelo próprio, pelo Selbst.
Haveria que chegar a um esquema totalizador, onde a história do narrador faria sentido, onde ele seria autêntico desde sua coerência. Os psicanalistas sabemos que tal duplo modo (importante, importante) de construir a Psicanálise trouxe ao mesmo tempo a questão de quando o narrador não pudesse fazer suas narrativas pela lógica do sistema e, especialmente, com sua capacidade, do próprio narrador, de transferir fantasmaticamente.
Duas questões se colocaram, de início. Se as narrativas se escutam unicamente como representações, só seria autêntico o que se encaixasse no sistema geral de representações. Logo, o narrador deveria narrar representacionalmente, conjuntando as narrativas para totalizar tematicamente o sistema psíquico que as permite, sistema que constitui a própria possibilidade de narrar. Ou seja, os que não quisessem “refazer” suas histórias de vida, suas lembranças e memórias desde as expectativas do psicanalista, os que não pudessem ou soubessem transferir, estariam fora do campo psicanalítico.
A escuta psicanalítica só precisaria ouvir as narrativas sob forma de representações, e só se interessaria pelos narradores assim produzidos. E, como sabemos por definição, tais narrativas têm que ter uma seqüência lógica, conjuntiva, de ligações organizadas tematicamente. Mas, no quadro que desenhamos acima, com nosso Imperador e suas preciosas roupas, vemos que a lembrança individual não tem o que contemplar por respeito a algum tema preciso. Pois, de saída, o Imperador é sonhado, no modo incoerente dos sonhos.
Também por dois outros motivos, que sigo primeiramente com uma citação de Benjamin: “o importante, para o autor que rememora, não é o que ele [o próprio] viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência… Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”.
E sigo depois com a noção proustiana de memória involuntária, que podemos entender como “desassociação livre”, pois ela não depende das “histórias de vida” com seus temas representacionais, na medida em que sempre e inúmeras vezes criamos, inventamos nosso próprio passado. Como indaga o mesmo Benjamin, se não é preciso “perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria a vida humana não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria prima da experiência a sua e a dos outros transformando a num produto sólido, útil e único?”
Na edição de 1925 da Traumdeutung, Freud se achega a tal modo de formular a questão, dizendo que “[ao menos] num caso, nosso trabalho interpretativo é independente das associações [do narrador], a saber, quando o sonhador emprega elementos simbólicos no conteúdo do sonho” (246; 240). Mas, ensina, só devemos considerar os sonhos onde as situações provocam vergonha no sonhador. O que são tais “elementos simbólicos do conteúdo do sonho”? E por que provocam “vergonha no sonhador”? Ou seja, as representações podem se verificar de modo fora da consciência do “representador” mas é preciso a presença de seu afeto de vergonha. Ou seja, presença da representação acompanhada da presença do afeto!
Aqui Freud introduz a descontinuidade de uma memória múltipla do sonhador. Para entender/interpretar o conto de Andersen, ele aponta a contradição “tão usual nos sonhos”, entre “o embaraço envergonhado do sonhador e a indiferença da multidão”. Por que? Pois “o sonhador é o próprio Imperador e o impostor é o sonho, a tendência moralizadora revela um conhecimento obscuro disso, que o conteúdo latente diz respeito a desejos proibidos ilícitos, que foram sacrificados pelo recalque” (249; 242). Sendo os sonhos a realização do desejo ou de desejos, eles dizem respeito à infância, onde o sonhador podia se exibir aos outros, sem ser censurado.
Mas a exibição é um problema ou questão de ordem patológica, do sofrimento (pathos) visibilizado ou mostração do corpo próprio, sem seus aparelhos, para também dizer a vontade de potência do corpo, sem amarras, o que se apresenta na imediaticidade do sofredor?
A respeito da teoria dos sonhos, lemos em Freud: “Devemos acrescentar que, quando [o ‘homem’] vai dormir, dá-se um inteiro desnudamento similar no seu psiquismo, desnudando-se de todos os invólucros de seu corpo, daquilo que é um complemento (Ergänzungsstücke) de seus órgãos corporais, como os óculos, perucas, dentaduras etc. O dormir é uma reativação somática da paragem do corpo materno com a realização do estado de repouso, calor e ausência de estímulo”. Para meu mestre vienense, o sonho regride à infância e diz respeito unicamente a um corpo individual, corpo primeiro, sem adições nem artifícios, corpo do indivíduo, individual, sem nascimento com os outros. Na obra freudiana, tal naturalização do corpo corresponde, muitas vezes, à naturalização do psiquismo, um modo primeiro de dizer a autenticidade, a Eigentlichkeit do corpo psíquico. A regressão onírica chegaria a um corpo individual nu, sem assistência, amparado em si mesmo, posto isoladamente desde seu modelo originário, que é o da vida intra-uterina.
Lembremo-nos, colocando no nosso livrinho de notas necessárias para uma próxima discussão, que Férenczi afirma que o corpo próprio se faz através dos mecanismos de introjeção (e projeção) primário(s), onde o outro está sempre presente. Ou seja, o “ser próprio” precisa da experiência da alteridade. Mesmo quando pensamos sobre animais “individuais”, qual pássaro existe sem se exibir à sedução/desejo de ser seduzido pelo outro, que ninho se faz sem um adorno, uma estética que constitui autenticamente as inúmeras modalidades de vida de se determinar para e pelos outros?
Inexiste a natureza, disse Lucrécio, o mestre materialista implacável, os “humanos”, os modos de subjetivar é que construímos tal idéia.
Deixemos de lado os outros “externos” e pensemos os outros tecnológicos que constituem nossa corporeidade própria. Devemos pensar por relação às novas questões que as tecnologias contemporâneas impõem ao “se fazer corpo” e ao se pensar corporeidade. Será preciso que os psicanalistas acompanhemos melhor este novo estado de coisas contemporâneo, que inclui desde filhos inseminados artificialmente e outros órgãos corporais fabricados ou retirados de outros corpos (e os futuros clones) até próteses e adições corporais antes insuspeitadas (fabricam-se asas humanas hoje em dia: finalmente os anjos existem!).
Questionar nossa teoria desde o que é hoje a sexualidade no pensamento “artificial” é importante e teremos que aprender a fazê-lo. É preciso pensar se existe tal homem natural e individual à moda de um certo Rousseau, pois este mesmo sempre postulou que o humano se faz através do afeto da piedade, da compaixão, que obriga e impõe inclusão do outro humano, corporalmente delineado e tematizado.
Mas, a nós espanta que, durante tantos anos, não se tenham escrito ensaios ou comentários psicanalíticos sobre a função autêntica, autenticamente constitutiva, de óculos, chinós, dentaduras, próteses, calços, espartilhos, muletas, perucas, apliques, espartilhos, cirurgia plástica de embelezamento, adereços, etc., objetos de extensão, atualmente corriqueiros. Como encaixar em tal naturalidade presumida teoricamente as próprias próteses do maxilar de Freud, vítima de um câncer insidioso?
Reduzir os chamados “artifícios” a uma pretensa função de um narcisismo abstrato não é apenas uma insuficiência psicanalítica mas uma confissão de que temos pouco direito ao presente, com suas questões mais pungentes. Isto, no regime “externo” da correção de corpos, da produção hodierna de novas corporeidades. É imaginar, para o efeito desta teorização tão empobrecedora e redutora, mas vigente pelo critério psicanalítico das generalidades, que o corpo é e só pode ser verificável desde o nascimento supostamente fisiológico do indivíduo; modo sumamente empobrecedor de elaborar qualquer vida ou o viver humano, a constituição bem reduzida de um modo de subjetividade.
O que dizer quando um corpo depende inteiramente de um artifício tecnológico, para ser um corpo vivo e poder se elaborar e expandir, como é o caso de um implante qualquer, mormente um implante de coração?
Sabemos que a chamada vida intra-uterina é também uma vida de muitas e muitas elaborações. Vida que será capturada politicamente e socialmente, tecnicamente e culturalmente, politicamente, já que aprendemos que a vida simples, a mera vida, a vida nua, mera vida (das blosses Leben, Benjamin; nuda vita, Agamben) é apropriada desde mecanismos de captura nos vários regimes da vida social (bio-poderes, Foucault), e que estes nos ligam, nos conjuntam profundamente às articulações institucionais, jurídicas, políticas, de saber. E tecnológicos.
Como ensina um grande filósofo italiano: “Pois o homem não é ou não deve ser uma essência ou natureza nem um destino específico, sua condição é mais vazia e insubstanciável: a verdade. Para ele, o que fica escondido não é alguma coisa por detrás da aparência, mas o próprio fato de aparecer, o fato de ser apenas o rosto. Levar a aparência à própria aparência é a tarefa da política”.
O que chamamos “humano” nasce também amparado pelos outros, mesmo quando tal “amparo” seja desamparador e escravizante. Quando a vida social determina indivíduos ou/e grupos que podem ser simplesmente eliminados não apenas da existência mas da vida social validada, que origem psicogenética garante a emergência individual?
O desejo não é unitário, segundo aprendemos com o próprio Freud, não se realiza de um único modo e imediatamente, como pensam alguns, para quem no saber psicanalítico, sua “fonte originária” de significação estaria nas vivências infantis. O “infantil” é múltiplo e permanentemente insistido. Como ensinou Freud: “Quando alguém, entre manifestações dolorosas, [ou] sonha que seu pai ou sua mãe, irmão ou irmã morreram, eu não usaria este sonho como prova que ele deseja tal morte agora. A teoria dos sonhos não exige tanto; contenta se em inferir que alguma vez na infância ele teria desejado sua morte”. Ou seja, o infantil se recria permanentemente, incessantemente, em modos parciais. Morte como afeto é distinto de morte como representação finalizante.
Postulava Freud que as fantasias que se apresentam agora nos sonhos são da ordem infantil cronológica, tendo se constituído numa época remota da vida do sujeito. Mas o desejo de morte não diz respeito apenas a representações adultas do presente, pois os sentimentos hostis (Feindseligkeiten) são bem mais freqüentes na criança do que se imagina, concluirá o próprio Freud. Enquanto uma representação adulta de morte se faz desde um enterro, à gelidez do cadáver, à sua decomposição e ao “terror do nada sem fim” etc., a representação das crianças diria respeito aos impulsos hostis, ao desejo de apagar temporariamente um adversário, e até mesmo ao querer a conservação (um menino deseja que a mãe, depois de morta, seja mumificada, para que possa permanecer, não morrer, se votar à eternidade).
Assim, do mesmo modo que Freud nos ensinou que o conto de Andersen é múltiplo, uma versão das muitas versões possíveis, devemos questionar a questão do que é autêntico, daquilo que seria próprio por relação a uma das múltiplas narrativas. Sigamos.
Um exemplo se escreve no próprio texto freudiano sobre as roupas do Imperador. “A criança também emerge no conto de fadas, pois foi um grito súbito de uma criança pequena [que viu a nudez] ao verificar ou se ver no conto ou versão de Andersen: ‘Mas ele não está usando nada’”. Observo que Freud não fala de uma pequena criança, mas de “a criança”, das Kind. Postulo que essa criança é também a criança infantil do Imperador, ou seja, ao lado daquela que desfila se exibindo, existe aqueloutra que grita, denunciando a exibição, pedindo contenção. E que constitui o Imperador de modo tão fundamental, que “ele” (o conto ou o sonho impostor, como quer o nosso mestre) é incapaz de seguir adiante com o desfile. Denunciado na sua nudez, a narrativa pára o séquito exibicionista, o Imperador volta para o castelo e seus camareiros vão à procura dos impostores, que não estão mais aí: “E os camareiros vão e procuram os impostores, que já nem estavam aí”. O infantil denuncia não apenas a nudez como a impostura; mas os impostores já não estão: este é o exercício da ilusão, da mais autêntica.
Ou seja, simultaneamente à exibição da criança do Imperador, o infantil recalcado de sua infância exibicionista, está a inibição da criança, que tem sua fala ecoada por algum pai. Ambas as crianças são, inseparavelmente, o infantil do Imperador. Uma exprime exibição, outra inibição.
Mas, deveria indagar se essa minha versão não é mais e apenas um arranjo semântico, entre tantos outros possíveis, para apontar para as dificuldades do momento da teoria psicanalítica ou, ao menos, de uma investigação do que seria próprio, do regime de autenticidade, Eigentlichkeit.
É, mas também não, e podemos observar isso num outro exemplo, na intimidade freudiana, numa elaboração inconsciente, num momento muitíssimo importante da criatividade de Freud. Trata-se de uma carta, onde ele cita os mesmos escritos de Andersen e Fulda, para dizer que são interpretações equivocadas de desejos (relembro que sua correspondência com Fliess é concomitante à elaboração da Traumdeutung ). No início da mesma carta, escreve Freud: “Sei que no momento sou um correspondente incapaz, sem direito a nenhuma reivindicação, mas não foi sempre assim e não será [sempre] assim. O que aconteceu em mim, ainda não sei; qualquer coisa (irgend etwas) do mais profundo das profundezas de minha própria neurose se insurgiu contra a compreensão das Neuroses e, de qualquer modo (irgendwie), você está envolvido” (272; 255/6). No exato momento em que Freud vivencia sua própria inibição para a produção, re-conhece a transferência com Fliess (mesmo sem ainda nomeá-la como tal, sem poder sabê-la como tal). Ou seja, a reprodução dos desejos infantis se dispõe diferentemente da produção adulta, teoricamente elaborada.
Ou ainda, Freud confessa ao amigo Fliess sua inibição infantil de escrever, sua restrição produtiva, ao invés de afirmar seu exibicionismo. Muito antes de seu conhecido escrito de 1936, sobre seu transtorno de memória na Acrópole, pode-se entender tal afirmação como o desejo e o temor concomitantes de superar o pai. Ele redigia a Traumdeutung, e tinha dificuldades em elaborar seus conceitos muitíssimo originais. Mas seus sentimentos, nessa carta transferencial a Fliess, são de uma dificuldade da qual ele pode falar, narrar, mesmo quando não os conceitue ou elabore psicanaliticamente.
Freud não falsifica eventos passados, para enfrentar seus sentimentos de desrealização (Entfremdungsgefühle, como na carta a Romain Rolland), mas os aceita e segue adiante na produção conceitual da Psicanálise. Três meses depois dessa carta, ele enuncia, no modo teórico, o “poder de atração do rei Édipo, apesar de todas as objeções que a razão erige contra as pressuposições fatuais”. Ou anuncia o reconhecimento de resistências, “que me aprisionam e arrastam por todas as épocas, numa veloz associação de idéias” (carta 143, 295;275). Apesar do medo de que Fliess, seu grande “transferencista”, não vá apoiá-lo em tais formulações: “Querido Wilhelm! Estou tão contente, por receber suas notícias novamente (é a terceira [carta] desde Berlim), que afastei todas as idéias de desforra [da parte de Fliess]” (carta 144, 297; 276).
Portanto, no encontro com o outro, ou o Outro, expressa-se também uma inibição e não apenas a exibição “que se espera” da infância. Pulsões não são unicamente exposição ou exposições de se mostrar aos outros, recuperar um sentimento de nudez onde o homem estaria disponível “como no nascimento”. Pulsões não têm alvos, Ziele, únicos. São sempre e também ritmos, oscilantes. Bipolarizações, assim quer a Psiquiatria contemporânea.
Nas sociedades sem-vergonha em que vivemos, onde não há ou há pouca inibição para a exibição dos corpos nus, constituindo-se no que alguns psicanalistas chamam de “sociedades narcisistas”, essas que teriam seus corpos nus e imediatos como modelos a serem representados, quais são os corpos exibidos (exibicionados)? Corpos que representam um padrão de beleza única, com idades e padronizações marcadas, como qualidades a se reproduzirem infinitamente, desde a infância até a morte. Corpos que são “fotografados” e reconhecidos fisiognomonicamente desde o ultra-som no ventre, até serem maquiados belamente depois da morte: não corpos quaisquer, produções totalizantes.
Pensemos se as sociedades onde se produzem tais padrões obrigatórios não
são também as mesmas sociedades, como no caso atual da brasileira, onde seus líderes se apropriam, despudoradamente, dos bens de todos, condenando a imensa maioria da população à fome permanente, ao extermínio infindo. Não há culpa, nem vergonha, inexistem limites que contenham tais atitudes e investimentos; que, contudo, não merecem a mesma atenção e consideração dos psicanalistas pois seriam situações ditas não-sexuais, “sem infância” que as justificasse.
O que seriam o autêntico e a autenticidade? O que merece teorização?