Teóricos das Relações de Objeto
Quinta-feira às 14h30 com Ricardo Parente (Aulas presenciais com transmissão online).
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Dia 10 de março de 2022 Renata Udler Cromberg é nossa convidada para abrir o semestre letivo com uma aula especial.
MoreArtigo de Mônica Donetto Guedes
Para analisarmos o que quer uma criança diante dos seus sintomas é preciso pensá-la na relação com seus pais. É interessante escutarmos na clínica, pais angustiados com algo referente a criança, no que diz respeito ao seu desenvolvimento no campo das relações e das emoções: A preocupação, na maioria das vezes, desconsidera a família como parte do processo, pois ao relatar o problema, o fazem dissociando do que se produz no entorno dessas relações.
A criança precisa de pais que estejam em consonância com as suas necessidades desde o início da vida. Como representantes da cultura serão responsáveis pelo processo de subjetivação da criança, o que nos leva a entender que não se fala de criança sem falar da vulnerabilidade desta, em função da sua dependência de um adulto.
Nesse sentido não basta contar com a capacidade do bebê de passar da total Dependência de um outro humano a Independência Relativa. Será necessário contar com “pais suficientemente bons” para proporcionar a criança os recursos necessários ao seu desenvolvimento saudável. Winnicott (2005) nos ensina que os processos de maturação formam a base de desenvolvimento da criança, tanto em psicologia como em anatomia e fisiologia, e que quando falamos especificamente do desenvolvimento das emoções é condição si ne qua non que haja condições externas para que se evidencie os potenciais de maturação do bebê.
Para entendermos as “dificuldades” das crianças, precisamos compreender que não há criança sem família (família aqui como unidade social capaz de influenciar e promover um modo de estar no mundo). Betteheim (1988) de uma forma simples, mas, no entanto, importante nos ensina que a família, em um sentido psicológico, é formada pelas interações de todos os seus membros, por seus sentimentos uns pelos outros e pela maneira como estão integrados na vida cotidiana. Como os pais são os adultos da relação não se pode escapar da ideia de que consciente ou inconscientemente as suas ações terão um profundo impacto no que a criança virá a ser.
Mas, por que os pais muitas vezes desconsideram essa unidade e não compreendem ou reagem ao comportamento do filho como algo que não os inclui?
Porque as relações humanas não são constituídas apenas dos valores, regras e acordos sociais. O indivíduo é atravessado pela sua história e pré-história, o que marca o modo como está estruturado psiquicamente.
A chegada de um filho provoca mudanças muito mais profundas do que as previstas. Os dias já não são mais os mesmos, as noites então… O nascimento da criança produz transformações significativas não apenas na forma como estes pais estão organizados, mas também nos aspectos psicológicos de cada um deles. Gostaria de destacar as fantasias que são criadas em torno do nascimento do bebê.
Todos os pais idealizam seus bebês. Antes mesmo do nascimento fazem uma série de fantasias em relação a eles: se será menino ou menina, o porquê da escolha do nome, a creche que frequentará…. Os pais também idealizam como será a sua relação com esta criança. E são essas fantasias que poderão se tornar persecutórias para ela:
• O que há por trás destas fantasias? Não serão os próprios pais numa edição atualizada?
• E o que buscam quando pensam num ideal de relação?
Alguns pais depositam na maternidade ou na paternidade a possibilidade de reelaborar questões não resolvidas da sua própria infância.
Sendo assim é possível ter no filho a esperança de ser o que ele não foi e ter o que não teve. “Cuida-se” tanto desta criança que ela acaba por adoecer, do ponto de vista psíquico. Muitas vezes é imputada a ela uma carga impossível de suportar. Na verdade, uma sobrecarga…. Algo que ela carrega, mas que não lhe pertence. Segundo Green (1988), as crianças são amadas com a condição de preencherem os objetivos narcisistas que os pais não conseguiram realizar.
Quando tal situação ocorre percebe-se claramente que essa família está “surda” às necessidades da criança. Geralmente, esse movimento se dá de forma inconsciente e é a própria criança que vai fazer a denúncia, apresentando algum sintoma. “Adoecer”, neste caso, é a possibilidade de escapar desta “prisão” ou da obrigatoriedade de encarnar um papel e um modelo que para ela não tem sentido.
Na clínica é comum escutar pais angustiados, lamentando-se através de afirmações do tipo: “faço tudo o que os meus pais não fizeram para mim”, “eu não tive, mas certamente ele não deixou de ter, e é por isso que não entendo o que se passa…”, “é muito bom fazer por ele o que meus pais não puderam fazer por mim”, “ dou a esta criança todo o amor que não recebi”, “dou todo o amor que um dia quis receber”, “ faço TUDO por ele, não compreendo o seu comportamento …” Essa necessidade de adaptar a criança as suas próprias mazelas, leva-a a ficar assujeitada ao desejo dos pais ou de um deles e responsáveis por se tornar o que eles não foram.
O trabalho do analista junto as famílias seria de favorecer um espaço para que os pais possam reconhecer, e quem sabe, elaborar os objetivos narcísicos depositados nas crianças, transformando assim os conflitos vividos por ela e/ou sua família. Ferenczi (1992) explica que a adaptação da família à criança só poderia iniciar-se se os pais começam a compreender-se melhor eles próprios e assim chegariam a adquirir uma certa representação da vida psíquica dos adultos.
Voltando as expressões dos pais que traduzem a necessidade de ressignificar nos filhos as suas próprias histórias, é possível inferir que não há espaço na relação para que a singularidade apareça e com ela a potencialidade da criança, ao contrário, nos mostra o quanto ela fica refém ao desejo de um dos pais e responsável afetiva por eles. Brazelton e Cramer (1992) afirmam que há anos os médicos de crianças entendem que os “sintomas” apresentados pela criança poderiam ser expressões muito claras dos conflitos inconscientes dos pais.
Um dos recursos usados pela criança que fica nesse lugar de objeto dos pais é não crescer para que assim permaneçam com o “compromisso” fantasmático de responder as exigências consciente ou inconscientes de um deles.
Na análise com a criança que apresenta sintomas que tornam sua vida pouco expansiva é oferecido um espaço onde possa encontrar novas formas de estar no mundo, superando o sentimento de culpa que muitas vezes aparece através da agressão e hostilidade (uma saída possível para obter alívio). Em outros casos o sentir-se agressiva é projetado, no entanto, essa maldade que coloca no outro retorna para ela e junto o sentimento de perseguição.
Segundo Winnicott (2005) nesse segundo caso essas crianças estão sempre na expectativa de serem perseguidas e acabam tornando-se agressivas como um modo de se defender contra esses ataques imaginados. Esse mecanismo pode ser encontrado numa determinada fase em quase todas as crianças, mas nos adultos é entendido como um adoecimento.
Onde nascem essas questões? Onde estão os recursos para que essa criança passe pelas fases iniciais adquirindo ferramentas para lidar com a vida suportando as frustrações e reconhecendo os limites como bateria para crescer e expandir-se diante das exigências do mundo?
Respondo a essa questão fundamentada na teoria Winnicottiana (1960) referente ao desenvolvimento do bebê na relação com a mãe desde sua Dependência Absoluta rumo à Independência. Para o autor o desenvolvimento infantil acontece em estágios e se acompanharmos o processo veremos que cada uma das etapas oferece aspectos importantes a serem vividos para que o bebê amadureça em cada uma delas. O autor nos alerta que o desenvolvimento da criança é datado, mas que varia de criança para criança pois o modo como vai se constituir em cada período dependerá do modo como cada mãe se ocupa dos cuidados maternos. O bebê não escapará da pré-história familiar.
Winnicott nos ensina que no estágio inicial do seu desenvolvimento psíquico o que existe é o bebê em total dependência física e emocional do ambiente, mas ele não sabe disso, pois não se vê como um ser separado da mãe. Essa dependência não é percebida por ele, o que é fundamental para a sua constituição psíquica. A mãe ou quem se ocupa da função materna precisa estar presente se ocupando desse bebê que ainda não tem os recursos necessários para viver espaços vazios sem que essa experiência produza adoecimentos.
É importante, ainda, proporcionar-lhe um ambiente que se mantenha dentro de um padrão, sem muitas mudanças em sua rotina, para que o bebê mantenha baixo o seu nível de ansiedade. Se tudo o que envolve os seus órgãos sensoriais estiver sendo manejado com sensibilidade, esta função de sustentação e amparo está sendo exercida a contento. Esta função, portanto, tem como objetivo fazer com que o bebê internalize uma sensação de confiança e se sustente emocionalmente no ambiente que o cerca.
A Dependência Relativa se dá na medida que ele percebe que tem algo que acontece inerente a sua vontade, há uma falha gradual materna, pois, a mãe ou a sua representante já não está mais ali inteira para o bebê. Desta forma vai compreendendo a partir da experiência a existência do EU e do NÃO EU. Nesse momento o bebê já consegue expressar suas necessidades e desta forma caminha para a Independência Relativa do ambiente.
É preciso compreender que a importância da manipulação do bebê. A troca de fraldas, o banho, o modo como ele é colocado para dormir no colo e como é alimentado, por exemplo, trazem uma carga de afeto que contribui para o seu bem-estar. O bebê faz suas primeiras experiências com o corpo ao mesmo tempo em que o desenvolve. É através destes cuidados diários que a mãe contribui para o desenvolvimento do EU do seu filho. É importante ressaltar que não basta que os cuidados tenham um caráter objetivo, quer dizer, deixar o bebê limpo, sem fome e quieto. Não! A forma como estes encontros entre mãe e bebê são produzidos é que imprime nele as marcas necessárias ao seu desenvolvimento. O afeto que permeia este encontro será primordial neste processo. A Independência será sempre relativa pois segundo Winnicott, o indivíduo sempre dependerá do ambiente e das pessoas que o compõem, enquanto estiver vivo.
O que se constrói nas fases iniciais do desenvolvimento da criança servirá de base para as fases futuras. Nesse sentido, a relação da criança com as outras pessoas que passarão pela sua vida será sempre uma reedição dessas primeiras relações dentro da família. Winnicott (2005) no seu artigo “ Natureza e origem da tendência antissocial”, nos ensina que a criança normal, ajudada nos estágios iniciais pelo próprio lar, desenvolve a capacidade para se controlar. Segundo ele, dessa forma a criança desenvolve o que chama de “ambiente interno” para descobrir um bom meio. Para maior elucidação podemos ainda acompanhar no texto a comparação que ele faz a criança antissocial: Ele nos ensina que a criança antissocial por não ter tido a oportunidade de criar um “ bom ambiente interno” precisará, com todas as forças, de um controle externo se quiser experienciar a felicidade, brincar e trabalhar.
É preciso ainda validar a importância da experiência de frustração: Podemos inferir que não seria bom para a criança crescer com a ilusão de que diante de um forte sentimento negativo representado pelo seu grito, choro ou tristeza, algo mágico aconteceria e ela passaria a ter de volta o que não queria nunca ter perdido. Viver o luto pelo que foi perdido é doloroso, mas extremamente organizador para que se possa continuar lutando e crescendo. Ao perceber a criança com raiva e até em um movimento de ataque, a mãe precisa adquirir a capacidade de resistir e de ter a segurança de que está fazendo o melhor. Mas é comum a mãe se ver refém do seu bebê, ameaçada de perder o seu o amor. Logo, é preciso pensar que o ato de amar não tem como pré-condição uma entrega plena. Ao contrário, deve estar subentendido que numa relação de amor existem duas pessoas que precisam ser respeitadas nas suas individualidades. O NÃO, necessariamente, está incluído no ato de amar.
Não se pode esquecer de que a famosa “educação com limites” não vem do nada e não acontece do dia para a noite. É uma construção que começa ainda quando os filhos estão no colo.
É importante pensar a criação dos filhos objetivando o desenvolvimento não apenas de crianças saudáveis, mas também de adultos saudáveis. Portanto, é preciso olhar para a criança de forma a perceber que o que for construído a partir desta relação inicial será preponderante para o desenvolvimento futuro. O que proponho é que se passe de um olhar fragmentado, de onde as ações muitas vezes estão submetidas àquela fase à qual a criança está remetida, a um olhar integrado, pensando o que daquela ação pode trazer como consequência, benefícios ou prejuízos.
Ao analisar o exemplo da criança que chora de raiva é possível ver certo movimento ativo para com a mãe ou outra pessoa que lhe oferece cuidados quando, através do choro, marca a sua insatisfação. Ele sabe muito bem como demonstrar que não gostou do que lhe foi feito ou do que está acontecendo, pois junto ao choro é capaz de espernear, vomitar, se sacudir e empurrar. As atitudes vão mudando à medida que a criança vai crescendo. Mais à frente, ele é capaz até mesmo de morder e de bater quando não atendido nas suas prioridades. Essa agressividade pode ainda aparecer travestida, como por exemplo, através do ato de dormir na cama dos pais.
Algumas inadequações referentes a forma de se relacionar e se ocupar no mundo, como o exemplo do “ato de dormir na cama dos pais”, estão permeados pela pré-história dos pais e sendo assim há, uma discrepância entre a tomada de consciência do que está acontecendo e a realidade dos fatos. Há um intercambio nessa experiência de receber a criança em um território “estrangeiro” (o quarto dos pais), ao mesmo tempo que estão submetidos, submetem a criança. Na clínica essas projeções são reveladas na medida em que há uma transferência analítica da família com o psicanalista. O que não é uma tarefa fácil se considerarmos a percepção de Brazelton e Cramer (1992) de que leva um tempo para ser descoberto, pois será necessário encontrar o laço que une a percepção de tais “problemas” a seu próprio passado.
Quero voltar ao termo “estrangeiro” que não foi usado ao acaso, mas remetido ao conceito de Freud (1919) sobre o estranho para pensar o que se passaria na cama dos pais que interessaria a família: O estranho é algo que retorna, algo que reaparece como uma repetição ainda que de uma forma diferente. Familiar e estranho coexistem diante da experiência e na base são conteúdos infantis que retornam. Isto é, os pais não se dão conta que a extensão da cama para criança é uma repetição da impossibilidade de oferecer um espaço para que ela possa construir sua independência, pois o temor da separação diz respeito ao seu próprio eu vulnerável e exposto à ameaça sentida diante desse bebê. Estaríamos então falando de uma das facetas da identificação da mãe com seu bebê, pois essa seria segundo Freud (1921) a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa.
A grande questão é: como os pais se comportam diante do ataque de fúria do seu filho? Como os pais lidam com as suas próprias frustrações ao frustrar uma criança que faz exigências que não podem e/ou devem ser atendidas?
Na clínica assistimos pais que chegam ansiosos, “descabelando-se”, fazendo notar que não conseguem lidar com aquela situação. Muitos não conseguem manter a calma esperando até que, em alguns minutos, a criança retome a tranquilidade ou experimente outro modelo de atuação para se fazer entender. Esta observação nos leva a importante hipótese de que ao longo dos anos a relação pais/criança foi pautada desconsiderando as conquistas do bebê. Segundo a teoria Winnicottiana, nesses casos, a mãe não experimentou uma desadaptação gradativa as demandas da criança quando essas demandas já não cabiam mais na relação. Não foi possível para essa mãe sentir a capacidade do bebê de empregar novos mecanismos mentais.
No atendimento, para as famílias, incluir a história do nascimento da criança e a forma como essa relação foi construída, será fundamental para o tratamento. Não podemos esquecer que a cada nascimento de um filho nasce também uma mãe e um pai. Se os pais se assustam e tornam-se reféns da criança é porque a relação foi desde sempre pautada nessa base.
Um bebê zangado, definitivamente, não é um bebê perigoso. É, antes de tudo, um ser que busca a satisfação a partir dos seus atos, satisfação esta que nem sempre poderá ser atendida. Um bebê é sempre direto e intenso na sua forma de se expressar. Diante de uma perda ainda que temporária, é capaz de vivenciar este momento entristecendo-se e, de fato, entregar-se a esta tristeza. É preciso suportar o choro representante da satisfação, da dor, da raiva e da tristeza que o bebê ora sente. Suportar a angústia de vê-lo sofrendo. O mal-estar é parte constituinte da vida, portanto, não é possível pensar em retirá-lo de cena.
No desenvolvimento do processo da criança é função dos pais acolher e ampará-las. Será preciso escutar as ansiedades que permeiam o desenvolvimento infantil em função das fantasias pertinentes ao seu crescimento. No entanto, acolher e amparar não significa ser excessivo e refém das exigências infantis. Até porque em muitas situações o que assistimos é a criança que está ocupando lugares inadequados na relação com os seus pais ou com um deles. Um grande exemplo dessa inadequação faz referência a questão fundamental desse artigo que é a da criança que dorme do quarto dos pais, com os dois ou pior, quando um dos pais sai da cama permitindo que o filho ocupe o seu lugar.
Essa experiência por si já nos remete a muitas interpretações, que é claro precisarão estar associadas as demais queixas referentes a análise da criança.
Se acompanharmos as questões discutidas nesse trabalho podemos inferir que uma criança que está no quarto dos pais, está em um lugar que não lhe pertence, o que a coloca diante da experiência de inadequação.
Tratarei aqui da criança que se instala na cama dos pais em função de não ter constituído no seu desenvolvimento emocional a capacidade para se envolver ou ainda perdeu essa capacidade depois de ter, num certo sentido experienciado-a por um tempo. Winnicott (2005) explica que o envolvimento surge como uma forma de cobrir o sentimento de culpa. O sentimento de culpa nasce a partir do sentimento de ambivalência quando a criança descobre que a mãe, entendida como um objeto bom (a que satisfaz as necessidades), é a mesma que o coloca em contato com as suas frustrações e sendo assim com o seu potencial de destruição quando diante das experiências desagradáveis. Nesse sentido está tudo a contento pois quando o bebê chega a essa fase do desenvolvimento entendemos que houve um ambiente suficientemente bom no estágio anterior e ele agora é capaz de ver a mãe como um objeto total e a ele mesmo como “ uma unidade que está fisicamente contida na pele do corpo Winnicott ( 2005, pág. 113).
O cuidado dos pais quando diante da criança que apresenta impulsos destrutivos devido ao desejo de possuir o objeto, será fundamental para sua saúde emocional. Sobreviver a essas experiências colocando-se acessíveis a criança, demonstrando empatia as circunstâncias, sendo capaz de escutá-los atentamente e sobretudo dispostos a receber através do gesto espontâneo do bebê, o pedido de reparação por suas ações vigorosas é a função da família.
Vejamos o exemplo do bebê que morde o bico do seio da mãe: Se a mãe se protege retirando por um momento a criança do peito e em seguida retorna oferecendo o seio novamente, o bebê consegue dar lugar a angústia sentida pelo fato de temer perder a mãe a uma autoconfiança crescente.
Essa reparação é possível através dos pais confiáveis, que permitem a criança dar vazão as suas pulsões transformando assim o sentimento de culpa em envolvimento. A capacidade de se envolver vem acompanhada da capacidade de preocupar-se e de importar-se com o outro, levando-o a responsabilizar-se pelos seus atos.
É certo que segundo a teoria winnicottiana, se não há a sobrevivência da mãe-objeto por conta da incapacidade da mãe-ambiente em oferecer um espaço nessa relação com o bebê, baseado na confiabilidade, não haverá reparação das pulsões destrutivas da criança, o que resultará em modos de adoecimentos das mais variadas ordens e complexidades.
Falamos da importância das etapas do desenvolvimento que leva a criança da Dependência absoluta à Independência Relativa para que ela cresça saudavelmente e que será fundamental a “falha materna” ao longo do primeiro ano tornando-se gradualmente desnecessária a criança onde ela já pode mostrar sua autonomia e potencialidades. Quando não há espaço para a separação (que só é possível na medida em que os pais entendem a importância da descontinuidade externa dos cuidados com a criança), o que temos é a impossibilidade dela desenvolver a capacidade de envolvimento ou perdê-la quando ainda não está inteiramente estabelecida.
Quando falamos de crianças, não falamos de inocência, ao contrário, as crianças são capazes de utilizar seus recursos mais primitivos para obter o que em um determinado momento está em consonância com as suas pulsões.
De acordo com as suas emergências psíquicas ela é capaz de se sujeitar as demandas da família ou se opor a elas … na maioria das vezes essa forma de estabelecer as relações já faz parte dos códigos construídos a partir das experiências primeiras com seus pais.
O que faz uma criança na cama dos pais? Em primeira instância, denuncia a falha deles por não lhe oferecer os recursos necessários para encontrar no seu próprio corpo, recursos para lidar com seus fantasmas. Uma criança que não se apropria da sua própria cama e quarto aponta para a ideia de que algo não foi elaborado no que diz respeito às suas experiências no próprio eu, sendo assim não construiu autoconfiança e segurança no que pode esperar da vida, isto é, não houve um ambiente capaz de lhe dar uma certa estabilidade interior fundamental para o desenvolvimento da dependência da criança.
O quarto dos pais passa a ser o lugar onde ele pode se proteger e/ou proteger os seus pais dos fantasmas que aparecem a noite provocando medo e insegurança. Os fantasmas são projeções do desejo de destruir o outro (seja o pai, a professora, ou o colega da escola). Essas figuras são representantes das dificuldades que a criança tem em lidar com as experiências vividas ao longo do dia. Importante ressaltar que a escola, como o lugar de extensão do lar, muitas vezes é usada pela criança para anunciar a sua dor de existir. Muitos dos adoecimentos infantis emergem na escola, pois lá encontra indivíduos que a colocam em contato com as suas impotências. Se antes na família os pais faziam acordos com a criança, na fase escolar os conflitos emergem. Não há uma regra quanto à forma dessas emergências eclodirem: A agressividade da criança pode ser direta aos que a provocam com relação as suas fragilidades ou pode ainda ser direcionada aos pais, pois por algum lugar a criança sabe que houve falha deles ao longo do seu desenvolvimento.
Se os pais falharam até aqui, serão obrigados a repensar o destino dessa relação e o que será preciso para que haja uma ressignificação no modo da criança funcionar psiquicamente e para que assim, ela possa se restabelecer. Não podemos desconsiderar que a sua capacidade de administrar o mundo externo depende da sua capacidade de administrar seu mundo interno, para isso a criança precisa estabelecer com seus pais condições para diferenciar o que está dentro do que está fora, o que é produto da fantasia e o que é real. O que nem sempre é fácil, pois muitos pais ao trazer a criança para a consulta têm muita dificuldade de se incluir nos problemas enfrentados por ela.
Os pais que colocam a criança na cama do casal estão ratificando as incertezas que o meio ambiente produz na sua fantasia, desfavorecendo assim o seu desenvolvimento emocional. Esses pais geralmente não se percebem invasivos. Pensam que o cuidado é sempre bem-vindo quando, na verdade, “Proteção demais desprotege”, continuam a não “falhar” nos padrões de adaptação quando a criança insiste em denunciar que precisa sair para o mundo. Nesse sentido, podemos também considerar que nos medos noturnos que levam a criança para o quarto dos pais, há um quantum da agressividade interna projetada no ambiente externo: Impedida da capacidade de envolvimento e como consequência não ter construído a capacidade de importar-se com o outro, comporta-se como o bebê voraz que é capaz de devorar a mãe, que nem por um instante é capaz de proteger-se para não ser simbolicamente engolida por ela.
O dormir na cama dos pais raramente chega à clínica como uma queixa, geralmente aparece em um determinado momento das entrevistas, quando não omitido durante algum tempo. Dentre uma série de sintomatologias, tais como distúrbio do sono, enurese noturna, terrores noturno, agressividade, são alguns dos “problemas” a serem tratados.
Há um certo descomprometimento no discurso dos adultos, como se as questões da criança não passassem pela relação com eles. Pinheiro (1995) ao escrever sobre a importância dos pais na obra de Ferenzci, nos ensina que o papel do adulto é ao mesmo tempo significativo e muito diverso o que nos leva a considerar que o papel do adulto é mais importante do que o da criança. Sendo assim, podemos reafirmar a importância dos pais quando no atendimento de crianças em análise.
Há sempre algo escondido diante fala dos pais ao explicar o porquê da criança na sua cama, vejamos algumas das afirmações: “Ele tem muitos pesadelos e acorda muito assustado”, “é tão bom tê-lo pertinho da gente. Logo vai crescer e perderemos nosso bebê”, “Me sinto culpada pois eu e o meu marido trabalhamos muito e assim é uma forma de compensar a distância”, “ Ela nunca conseguiu dormir no quarto dela”, “ eu tenho medo de deixá-lo sozinho no quarto dele, e se algo acontecer? ”, “ É só uma fase. Logo passa.”, “não acho que dormir com os pais seja um problema”. “ Eu não quero que ela durma… mas vai de madrugada e eu nem percebo”, “ Confesso que estou muito cansada e não quero levantar de madrugada para colocá-la de volta na cama. ”, “ Não sou eu é o pai quem sai da cama e vai dormir no quarto dele”, “ você sabe, não aguento mais o meu casamento e ter as crianças na nossa cama e muito confortável para mim”.
Nesse sentido o que temos é o desmentido do adulto: a criança vai inicialmente para a cama dos pais com seus fantasmas, por não suportar o desprazer interno, no entanto, é recebida por um adulto que como diz Pinheiro (1995), no contato com a criança fica mobilizada no mais íntimo de si mesmo, por alguma coisa que diz respeito ao seu próprio nascimento. A criança encontra pais que ao invés de exercerem a função estruturante e como diz Ferenzci (1931) ao invés de estarem presentes, com toda a sua compreensão, sua ternura e, o mais raro, com uma total sinceridade, digo, desmentem a existência dos fantasmas, ao mesmo tempo que “os acolhem” na sua cama.
Sendo assim não há como escapar: sabemos que os primeiros anos da criança são fundantes e predeterminados pelo que acontece na relação com os pais. Nesse sentido, os analistas que entendem a importância de criança estar fora da cama dos pais, precisará incluir a família no processo. Despertar os pais para os aspectos da sua pré-história que produzem mal-estar na relação familiar, é uma emergência na clínica com crianças.
BIBLIOGRAFIA
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MANNONI, M. – Conversando sobre Bonneil, entrevista realizada por Lajounquière e Scagliola. Estilos da Clínica: Revista sobre a infância com problemas. Ano III, Nº 4. São Paulo: IPUSP, 1998.
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________ . A criança retardada e a mãe. 5a ed. São Paulo: Martins Fontes, Jorge Zahar Ed. : Ed. UFRJ, 1995.
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_______ . A família e o desenvolvimento individual. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
_______ . Privação e delinquencia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
_______¬ . Os bebês e suas mães. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006
Textos de Marta Mosley e Andréa Espinola, em escrita livre sobre o filme Temporada (2018), para o Módulo Entre Psiquiatria e Psicanálise.
Direção e roteiro: André Novais Oliveira
Elenco: Grace Passô, Russo APR, Rejane Farias
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Temporada é um período, uma estação, um espaço de tempo determinado… O singelo e delicado filme Temporada trata do cotidiano simples de Juliana, que trabalha como agente de endemias no combate à dengue em uma cidade no interior mineiro.
Juliana é mulher, preta, pobre e gorda, e en-carna muitos dos estereótipos do preconceito e da marginalização. O enfrentamento diário de seus medos – o escorpião, a escada, os tiroteios – parece prepará-la para o enfrentamento da vida. O distanciamento de sua cidade natal e a solidão permitem, pouco a pouco, a elaboração de seus lutos: a morte da mãe, a perda do bebê, o casamento falido, a ausência de referências da cidade que ficou pra trás.
Em uma conversa com a prima, Juliana divaga: “Às vezes fico pensando nessa coisa de destino… é que tem coisa que acho que já tá escrita mesmo… mas tem coisa também que é a gente que faz, a gente que controla…”.
A aposta num novo trabalho era também uma aposta na vida: um novo lugar, novos encontros, o erótico, o humor nas amizades. De uma vida desencantada, subjetivamente empobrecida, a saída de sua cidade provoca um deslocamento espacial e tem como resultado uma mudança de posição subjetiva.
Mas essa temporada, como o nome indica, era provisória, e Juliana se lança em um salto ainda maior: com um gesto espontâneo, assume a direção do carro, e num ato de pura alegria, se dá conta de que também pode dirigir a própria vida, controlar o seu destino. Temporariamente… E como dizia Winnicott, experenciar “uma vida que vale a pena ser vivida”…
Marta Mosley, membro em formação da Formação Freudiana
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Temporada no divã
“Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz, dias a mais
Dias que não deixaremos para trás
Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no amor
Melhores na dor
Melhores em tudo”
Dias melhores – Jota Quest
Lidar com objetos acumulados, abandonados, guardados, contidos, antigos, quebrados, contaminados. Acessar as camadas, revolver a arqueologia, revisitar a ontogenia. Regredir, resistir, expandir. Tem lugares onde a gente não quer nem colocar as mãos. De um lado é isso. É esse desafio. Subir essa escada pra ver o que se vê. A gente pensa que não vai dar conta. E o que seria dar conta? Melhor focar em apenas subir. Se lançar. O caminho que se faz caminhando, a cada passo e a cada pequeno voo. Alguém fica na segurança e a gente vai. Do outro lado da escada é acompanhar esse trabalho e há várias formas de acompanhar. Tem quem apenas abre a porta, mas não acompanha, tem quem reclama para abrir a porta ou nem abre, manda você voltar depois. Tem quem transborde uma química enfumaçada que mata o que é preciso, mas também o que não era. Tem quem sai e deixa você lá dentro, encarando sozinho o que apodreceu, mas tem também quem te convide a sentar e tomar seu tempo para dar início ao trabalho. Reconhece o esforço de um trabalho tão duro, identifica as ausências, se preocupa, faz contato. Quer retomar o que foi interrompido. E assim, nesses pequenos momentos entre um cansaço e outro, é possível respirar e olhar para os lados. Ganha-se espaço, ganha-se tempo. Quem sabe uma expansão. Aquela perda pode ser encarada e aquela culpa pode ser dissolvida. E agora há uma escada para descer. Tá com medo? Vai com medo! Do alto foi possível ver mais longe, não só a beleza que ainda existe sim, insiste e faz seu horizonte, mas também o que foi retirado, transposto, o que poluiu e polui, o que é preciso conviver apesar da dureza. E na impermanência que traz os cortes, mas também os laços, em ritmos e intensidades imprevisíveis, apenas seguir. Desfrute a sua temporada.
Andréa Espínola, membro em aproximação da Formação Freudiana
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Temos o prazer de convidar todos para mais um ano de grupo de estudos com Fernando Urribarri.
MoreTerça-feira das 10h às 11h30 – com Luiza Atalia Fontes (Curso ao vivo com transmissão online)
MoreTerça-feira das 14h30 às 16h – com Andréa Junqueira (Curso ao vivo com transmissão online)
Neste semestre daremos continuidade às discussões sobre as experiências-limite na clínica psicanalítica, seus desafios, possibilidades e transformações no campo teórico/clínico. Cada vez mais esse percurso será imprescindível para acompanharmos o sofrimento psíquico na clínica contemporânea.
O modo como o psicanalista se coloca na relação analítica nos traz questões sobre a analisabilidade e seus limites. Entre as experiências desafiadoras na transferência e as afetações provocadas no analista, se abriria a possibilidade de psicanalisar.
Bibliografia básica:
Figueiredo, Luiz Cláudio – A Mente do Analista. Editora Escuta.
Figueiredo, Luiz Cláudio – A Psicanálise: Caminhos no mundo em transformação. Editora Escuta.
Ferro, Antonino – Na sala de análise. Editora Blecher
Obs: Serão oferecidos textos complementares durante o semestre.
Terça-feira das 16h às 17h30 – com Helcio Aranha (Curso ao vivo com transmissão online)
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