Imaginem uma criança, pequena ainda. Totalmente dependente de ajuda pra sobreviver. Então, alguém a escolhe. Antes dela ter nascido ou depois. Mas alguém a escolhe, isso é importante.
E então passa a alimentar essa criança. Ser comida para uma boca vazia. A criança então sobrevive, mas também pode começar a viver. Porque, com a comida vem junto parte daquele que a alimenta. E assim, meio que antropofagicamente – se o adulto puder se deixar comer – a criança se servirá também de sua cultura, de seus signos e do que esse adulto nem mesmo sabe de si mesmo.
Se tomamos essa imagem e sobrepomos a escola como cenário, algo assim também acontece. Ou quase. A criança, agora aluno, alimentada que foi de várias maneiras, se alimentará da escola como outrora se alimentou de quem lhe deu alimento e vida. Assim, ela chega à escola com fome, ela já é aluna –essa criança – antes mesmo de chegar à sala de aula. Ela tem fome de escola antes mesmo de conhecer uma de verdade.
Escolheu fazer parte de uma escola. Para que através dessa escola (e não de qualquer escola) possa se autorizar a se encontrar com o que só a escola autoriza e valida. Então a escola é sua, desse aluno. A escola é sua antes de se encontrar com os professores. Ele é quase escola, esse aluno. E agora será necessário reconstrui-la com seus professores.
E os professores? Precisam escutar o que esse aluno espera de nós. Precisamos!! O lugar da escola não é dado em um manual. Precisa ser construído! O que – através da escola, e com a escola – esses alunos esperam encontrar? Longe e distante dos lugares de sempre. Esses, que os que me lêem já conhecem. Os alunos também conhecem.
É do que os aproxima, professores e alunos, nessa montagem de escola, por eles, que é preciso falar, perguntar, escutar. Perguntar, escutar, falar … falar…Se encontrar.
Essa inquietude do aluno ocupando um lugar tão importante, sentindo seu chão e cheiro. Sua amplitude e imensidão é aquela que os professores deverão considerar ao se encontrarem com ele. Para isso fica a dica: os professores deverão estar também imersos numa procura. As vezes inquietante, mas só assim poderão compartilhar seu mundo-escola com o mundo-escola do aluno. Mundos.
Aluno e professor se constroem juntos. Aquele aluno se torna um pouco seu professor, se apropria dele, e supõe como poderá ser através e com ele, mais aluno. O professor pode se deixar produzir por esse aluno, e através dele ser o aluno que criou pra si, em seus sonhos. E mais, acessando-se como aluno, o professor, pode tornar-se para esse aluno que está diante dele, o professor que gostaria de ter encontrado em sua trajetória escolar. E assim se cria o conhecimento, através do que já se sabe, mesmo que secretamente.
Mas nem todo o processo flui assim, tão harmoniosamente. O aluno leva também pra escola aquilo que não cabe na escola. Que às vezes tem a ver com a escola, mas que não cabe nela. A escola que lhe foi passada pelos que lhe deram alimento, era mais do que a escola vivida e imaginada. Os adultos nem sempre conseguiam drenar, através do alimento oferecido à criança, partes com as quais não se alimentavam, partes não digeridas. Junto com o alimento que saciava a fome iam as palavras, disso sabemos. A criança aprendia assim: através da fome e das palavras. Mas, ambas, deveriam estar um pouco digeridas pelo adulto que a alimentava, caso contrário, poderiam entalar em algum canto da criança, criar nela um canto sem voz.
Isso, que se faz sem voz, às vezes faz mais barulho do que supomos. Como a escola pode receber esses barulhos gerados pela voz entalada da criança, agora aluno?
E o professor, não foi aluno e criança? Também foi alimentado de comida e palavras. E também ficou entalado, fez barulho na escola. Mesmo em silêncio num canto, mesmo que tenha sido o melhor dos melhores. Ele carregava algo que não sabia bem o que era. Era uma espécie de bolo dentro de alguma parte do corpo. Com o tempo, um tempo bom, esperamos, esse bolo foi se decantando e pode virar palavras, o alimento que cria um professor melhor. Mas seu aluno barulha sem saber, sem palavras, só barulho, mesmo no mais intenso silêncio. As vezes o professor se pergunta: o que há com esse aluno? Essa pergunta deve ser feita ecoando o vazio antes entalado por algo que veio junto com a comida e que o fez estar ali, professor.
Porque se não fizer essa pergunta desde seu próprio vazio o professor empurrará mais pra dentro o que entala seu aluno, impedindo que ele sinta o sopro das palavras de sua boca, um dia entalada e agora livre para buscar.
Alexandre dos Santos Costa
Psicanalista
Ilustração: Pulso (Instagram: @puls1nho)