De olhos entreabertos, um jornaleiro melancólico observa o noticiário. O braço apoiado no rosto, as luzes e sombras desenham um triângulo quase perfeito com a lateral do jornal exposto: “Roosevelt está morto”.
Não sabemos quem é o homem, são todos e qualquer um, o instante capturado não expressa o afeto de um indivíduo, mas atravessaria a todos eles. O olhar do jornaleiro revela a perspectiva de um menino de 17 anos que, desinteressado das obrigações mundanas, passeava pelas ruas de Nova York dos anos 1940 com uma câmera na mão. Kubrick vendeu sua primeira fotografia por 25 dólares.
Com o piscar das lentes fotográficas, o ritmo era linear e descontinuo, as imagens eram mudas, mas, justapostas em séries, começavam timidamente a contar estórias. O intervalo entre os frames diminuía pouco a pouco e, com alguns dólares no bolso e uma câmera cinematográfica na mão, em 1952, o jovem Kubrick dirige e produz seu primeiro longa: Medo e desejo. Ora, como um bom jogador de xadrez, Kubrick fornece os movimentos para o início do jogo e começamos justamente com aquilo que não podemos alcançar sob a luz de olhos bem abertos, mas se revela nos instantes entre luzes e sombras: o medo e o desejo.
Manter os olhos abertos à força não ajudará a ver melhor, Kubrick, em seu segundo longa, começa a incomodar aqueles que sonham com seus próprios umbigos: Glória feita de Sangue (1957) escancara a vacuidade da grande guerra – película banida por longos anos em todo território francês e espanhol. Por outro lado, entre aqueles que também utilizam a imagem em movimento para mostrar o que não pode ser visto de olhos bem abertos, o jovem Kubrick já despontava como uma promessa. Se, como canta Chico Buarque, os poetas e os cegos podem ver na escuridão, Orson Welles enxergou a potencialidade de Kubrick já em seus primeiros esboços. Não à toa; os dois parecem ter caligrafias semelhantes: a movimentação da câmera como recurso narrativo, a não linearidade temporal e a trilha sonora enquanto protagonista, sãos aspectos que os fazem mestres na linguagem cinematográfica e na criação de mundos.
Noir, ficção científica, filme de época, de guerra, romance, thriller, suspense. O caminho de Kubrick percorreu a transversalidade entre os gêneros. A constante invenção da linguagem cinematográfica cria estilos e revela obras primas. Kubrick não é um inventor de estórias, mas um criador de mundos que só alguns puderam enxergar. De sua primeira grande produção, Spartacus (1960), até a última obra, De olhos bem fechados (1999), considerada inacabada, os roteiros são adaptados de livros. O jovem devorador de romances e o adolescente fotógrafo se uniram para contar estórias experimentadas apenas quando a imagem está em movimento, histórias que são vistas de olhos bem fechados. A narrativa está nos enquadramentos geometricamente perfeitos, no silêncio prolongado, na música de Beethoven, na lentidão do ritmo, no ponto de fuga bem no meio da tela que parece nos engolir.
Mordiscados por Lolita (1962), filmado com auxílio do próprio Nabokov, mastigados por Doutor Fantástico (1964), a deglutição torna-se impetuosa em 2001: Uma odisseia no espaço (1968) em parceria com Arthur Clarke, a partir do pequeno conto “Sentinela”. Nas primeiras notas de Assim Falou Zaratustra de Richard Strauss, basta fecharmos os olhos para enxergarmos as cenas: TAN, TAN, TARAAAM. Antes do homem chegar na Lua, estávamos lá – nem Estados Unidos, nem União Soviética, fomos com Stanley Kubrick. Entre animais e máquinas deslizamos no universo e percebemos que só nos resta o silêncio condensado na imagem de um monolito. Em 2001: uma odisseia no espaço, as bordas não cerceiam o que é um filme: o filme está nos confins. Nos confins do humano, humano-bicho, humano-máquina, humano-universo.
De volta ao planeta Terra, somo convidados a tentar ficar de olhos abertos para não ver a violência que assola os homens, somos convidados a assistir ao esforço mecânico de deter a violência que encontra os corpos e se reproduz. O olhar de Alex, visto de cima, atravessado pelo seu chapéu preto está no imaginário de todos que se aproximam da sétima arte. O movimento da câmera acompanha a travessia da personagem, o olhamos de cima, de frente e, por fim, como suas vítimas. De olhos sempre abertos, Alex pode viver em sociedade, como corpo tornado dócil e distante da violência. A chama de Laranja mecânica (1971) inflamou de tal maneira o Reino Unido, país no qual Kubrick encontrou refúgio longe de Hollywood e residiu até o final da vida, que o próprio cineasta pediu, depois de um ano de recorde de bilheteria, para que retirassem o filme de cartaz devido a ondas e violência e ameaças à própria família – mais uma vez, a luz cegou aqueles que estavam vigilantes.
A luminosidade da sequência entre 2001 e Laranja mecânica acabou por ofuscar sua próxima obra prima: Barry Lyndon (1975), filmado sob luz de velas – cada cena é uma fotografia, cada imagem uma pintura dançante. A delicadeza da luz natural, no entanto, não foi muito aclamada: apenas 5 anos depois o grande público voltou a aplaudir, não sem ressalvas, as luzes de Kubrick. Em O Iluminado (1980), mais um roteiro adaptado ganha vida junto com todo o cenário: vemos rostos por todos os lados, o hotel está vivo. Encontramos um dos rostos mais marcantes do cinema, o sorriso perverso e o olhar esgueirado de Jack Nicholson entre as cortinas, não feche os olhos quem puder.
A iluminação não é análoga à razão moderna iluminada – Kubrick não dá voz à razão, apenas arranjos lógicos em cada quadro . A morte e o desejo lampejam em meio à luz do início ao fim, não há luz sem sombra. Depois de um jejum de 7 anos, Nascido para a matar (1987), mais um roteiro adaptado que inclusive concorreu ao Oscar na categoria, retoma a banalidade da violência na guerra, desta vez, a guerra do Vietnã. Após Apocalypse Now (Francis Coppola) e Platoon(Oliver Stone) ) ambos sobre a mesma guerra, o grande público mais uma vez só pôde aplaudir o olhar de Kubrick a posteriori. Full metal Jack (título original que no Brasil foi traduzido por “Nascido para matar”) é um nome de uma bala e não de uma guerra. O movimento da câmera na direção oposta (chamados de travellings para trás), a lógica implacável e geométrica da disposição dos soldados, os movimentos laterais da câmera em meio a cadáveres amontoados, nos deixam confinados em um abismo. Como afirma Michel Ciment, Kubrick, com sua fama de obsessivo à moda clássica, concebe o mundo ameaçado por dois perigos, a ordem e a desordem. O filme nunca foi e nem será apenas sobre a guerra do Vietnã.
A morte está sempre à espreita, mas, como nos ensinou Freud, enxergamos melhor seus efeitos quando de olhos fechados. Não é preciso mais uma vez evocar a proximidade das telas do cinema com o conteúdo manifesto onírico: o próprio Kubrick o fez da melhor maneira possível até seus últimos instantes. De olhos bem fechados (1999), sua última obra, é mais um roteiro adaptado, desta vez de um livro, “Breve Romance de Sonho”, daquele que foi indicado como duplo de Freud na literatura, Arthur Schnitzler. O sonho não está no título de Kubrick, mas, de olhos fechados, embarcamos nas suas travessias. As máscaras com bico de pássaro vestidas pelos personagens que nos convidam a atravessar a fantasia não deixam dúvidas: morte, desejo e sonho andam lado a lado. Ora, são máscaras justamente neste formato que Freud descreve em um sonho, narrado na célebre obra de 1900, utilizadas por pessoas carregando sua mãe morta. Aqueles que permanecem de olhos abertos talvez prefiram outra canção de Chico Buarque na qual o eu lírico promete para seu parceiro que não sonhará mais: “Foi um sonho medonho/Desses que, às vezes, a gente sonha/E baba na fronha e se urina toda e quer sufocar (…)/ Quanto mais tu corria/ Mais tu ficava, mais atolava/ Mais te sujava. Amor, tu fedia,/ Empesteava o ar. (…)/ E, olha que maldade,/ Me deu vontade de gargalhar./ Pois eu sonhei contigo e caí da cama/ Ai, amor, não briga! Ai, não me castiga!/ Ai, diz que me ama e eu não sonho mais!”. Só pode estar vivo na hora de morrer quem sonha e olha na cara da morte. Kubrick faleceu, antes de 2001, editando de olhos bem fechados.
[1] Thais Klein é psicanalista, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense e professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Membro Titular da Formação Freudiana.