Fragmento do verbete significante
Fragmento do verbete significante 710,711 do Dicionário de Psicanálise Elizabeth Roudinesco e Michel Plon
Foi em seu seminário de 30 de maio de 1955 que Lacan ilustrou essa teoria do significante através do comentário de um conto de Edgar Allan Poe ( 1809 – 1849 ), “A Carta Roubada” . A história se passa na França da restauração. O cavalheiro Auguste Dupin tem que resolver um enigma. A pedido do chefe de policia consegue recuperar uma carta comprometedora, furtada da rainha e escondida pelo ministro. Colocada em evidência entre os arcos da lareira do escritório, ela é visível, na verdade, para quem quiser vê-la. Mas os policiais não a descobrem porque estão aprisionados no engoda da psicologia. Em vez de procurarem a prova que lhes surge diante dos olhos, eles atribuem intenções aos ladrões. Já Dupin, por sua vez, prefere agir de maneira totalmente diversa, pedindo polidamente uma audiência ao ministro. Enquanto conversa com El, observa o aposento com olhar atento, depois de tomar o cuidado de dissimular seus olhos Poe trás de óculo opacos. Discerne imediatamente o objeto, retira sem que o ladrão se aperceba e o substitui por outro, idêntico. Assim, o ministro ignora que seu segredo foi desvendado. Continua a se acreditar no do jogo e da rainha, pois possuir a carta é deter o poder sobre seu destinatário. Entre tanto, ele não sabe que já não a detém, enquanto a rainha, desse momento em diante, sabe que seu mestre cantor não poderá exercer nenhuma pressão sobre ela, diante do rei: a simples posse, em não a utilização da carta, é que criava a ascendência. Para explicar sua conversa ao narrador, Dupin conta a história de um garoto e um jogo de par ou impar, um dos jogadores segura na mão um certo numero de bolas de gude e pergunta ao outro: par ou impar? Quando o sujeito acerta a resposta, ganha uma bola; quando erra perde uma. E Dupin acrescenta: “O menino de quem estou falando ganhava todas as bolas de gude da escola. Naturalmente, tinha um princípio de adivinhação, que consistia na simples observação e avaliação da esperteza de seus adversários.”
O “SEMINÀRIO SBRE ‘A carta roubada’”, que em 1966 serviria de abertura aos Escritos, atesta a maneira como Lacan passou de uma teoria da função simbólica ( do inconsciente), calcada em Lévi-Strauss, para “uma” lógica do significante. Segundo ele, uma carta [letre, letra] sempre chega a sua destinação, porque a carta, isto é, o significante, tal como se inscreve no inconsciente, determina a história do sujeito e sua relação ou não-relação com outrem. Nenhum sujeito é o dono da carta ( de seu destino) e, quando acredita sê-lo, corre o risco de se deixar apanhar no mesmo engodo que os policiais do conto ou o ministro.
A obra saussuriana não fornece todas as chaves da leitura lacaniana do inconsciente freudiana. Em 1957, em sua conferência sobre “A instância da letra no inconsciente”, Lacan acrescentou dois elementos à sua teoria: a metáfora e a metonímia. Deveu-as a uma leitura dos Fundamentals of Language , publicados por Roman Jakobson e Morris Halle em Haia. Um artigo contido nessa coetânea. “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”, retomado em 1963 nos Ensaios de linguística geral, permitiu-lhe organizar estruturalmente sua hipótese do inconsciente-linguagem. Jakobson destacou a estrutura bipolar da linguagem, graças à qual o ser falante realiza, sem que se aperceba, dois tipos de atividade: uma está relacionada com a similaridade e concerne à seleção dos paradigmas ou “unidades de língua”, enquanto a outra remete à contiguidade e concerne à combinação sintagmática dessas mesmas unidades. Na atividade de seleção, escolhemos ou preferimos uma palavra a outra: por exemplo, empregamos o vocabulário boné em oposição a touca ou gorro. Na atividade de combinação, ao contrário, relacionamos duas palavras que formam uma continuidade para descrever a roupa de um indivíduo, por exemplo, associamos o termo saia à palavra blusa etc.
A partir disso, Jakobson mostra que os distúrbios da linguagem resultantes de uma afasia privam o indivíduo ora da atividade de seleção, ora da de combinação. Depois, ele convoca a antiga retórica a serviço da linguística para sublinhar que a atividade seletiva da linguagem ao é outra coisa senão o exercício de uma função metafórica, e que a atividade combinatória assemelha-se ao processo da metonímia. Os distúrbios da primeira impedem o sujeito de recorrer à metáfora, enquanto os da segunda lhe impedem qualquer atividade metonímica. Jakobson salienta que esses dois processos encontram-se no funcionamento do sonho descrito por Freud. Situa o simbolismo na atividade metafórica, enquanto inclui a condensação e o deslocamento na atividade metonímica.
Retornando essa demonstração, Lacan transcreve de uma outra maneira a concepção freudiana do trabalho do sonho. Se este se caracteriza por uma atividade de transposição entre um conteúdo latente e um conteúdo manifesto ( A interpretação dos Sonhos), essa operação pode ser traduzida, em termos linguísticos, como o deslizamento do significado sob o significante. Existem, pois, duas vertentes da incidência do significante sobre o significado; a primeira é uma condensação ou “superposição dos significantes” ( palavras-valise, personagens compósitos) enquanto a outra se assemelha a uma “virada” da significação ( a parte pelo todo ou a contiguidade) e designa um deslocamento.
Assim, ao contrário de Jakobson, Lacan assimila a noção freudiana de condensação a uma metonímia. Três fórmulas passam então a descrever, segundo Lacan, a incidência do significante no significado: (1) a fórmula geral descreve a função significante, partindo da barra de resistência à significação; (2) a fórmula da metonímia traduz a função de conexão dos significantes entre si, com a elisão do significado remetendo ao objeto do desejo que falta na cadeia (significante); (3) a fórmula da metáfora fornece a chave para uma função de substituição de um significante por outro, através da qual o sujeito é representado.
Em 1975, numa conferência intitulada “O fator da verdade”, Jacques Derrida comentou essa teoria do significante, criticando a leitura que Lacan fizera do conto de Edgar Allan Poe e mostrando que uma carta não chega tão simplesmente a sua destinação. Ele sublinhou que, na própria redação do “Seminário sobre ‘A carta roubada’”, Lacan referira a si mesmo a indivisibilidade da carta, isto é, o “todo” ou o “um” de sua doutrina: um dogma da unidade. Ao “dogma” do significante, que corre o risco de se organizar como uma “posta-restante” para recolocar no “rumo certo o que ficou em suspenso, aguardando ser reclamado”. Derrida opôs o esfacelamento e a desconstrução do Um. Esse debate sobre a “primazia o significante” e sua possível desconstrução por uma leitura derridiana veio a ser o ponto de partida, nos Estados Unidos, de uma vasta polêmica sobre o estruturalismo, o lacanismo e o pós-estruturalismo.