Nada Aconteceu
“… apagar as ocorrências e negar a possibilidade de um acontecimento se constituir é a defesa mais forte para aqueles que não acreditam, como o velho Hegel, que as feridas do Espírito se curam sem deixar cicatrizes. Mas assim ficamos sem história.”
Revista Cult , Edição 180.
Acompanhe o diálogo entre Vladimir Safatle e Christian Dunker
Comentando o tema da morte e do luto abordado por Christian Dunker na CULT de maio, Vladimir Safatle escreve sobre o árduo trabalho de conseguir encontrar lugar para nossas experiências
Vladimir Safatle
Na última edição da Revista CULT, Christian Dunker falou sobre a impossibilidade de lidar com o sofrimento que parece tornar-se uma marca de nossas sociedades contemporâneas, lembrando, entre outras coisas, das mutações na maneira com que fazemos trabalhos de luto. Em um momento onde, ao menos segundo o novo DSM-V, quinze dias de luto já é visto como uma reação patológica, gostaria de insistir em um aspecto de tal impossibilidade de lidar com o sofrimento ligado à experiência da memória.
Hegel escreveu uma vez sobre a capacidade do Espírito de desfazer o acontecido. Tal força de anulação era modo de reconciliação. Maneira das feridas do Espírito serem curadas sem deixar cicatrizes. O Espírito teria a capacidade de transformar as perdas e decepções em momentos necessários de um verdadeiro processo de conquista. Tal como esses que guardam a confiança infantil de que, ao final, tudo se arranjará, a maneira do Espírito desfazer o acontecido seria a crença de que a última palavra será o verdadeiro nome e a verdadeira realização das promessas que estavam no início.
Um século depois, Jacques Lacan utilizou a mesma ideia, mas para falar agora de um modo neurótico de defesa próprio àqueles que não sabem como suportar um acontecimento, àqueles que, no fundo, anseiam por uma vida desprovida de todo e qualquer acontecimento. Pois o acontecimento não é exatamente aquilo que ocorre, mas o que deixa traços. É possível haver ocorrências intensas, novas e nem por isto elas serão acontecimentos. Pois elas poderão desaparecer sem produzir sonhos, memórias corporais, angústia. Basta que elas ocorram diante de alguém que teme a vulnerabilidade e a ambivalência que a intensidade das ocorrências necessariamente produz. O medo e a raiva da vulnerabilidade lhe farão esquecer. O amor pela autonomia lhe fará fugir de toda situação de dependência.
Aproveitemos esta discussão para uma consideração sobre a própria noção de “acontecimento”. Se sua característica fundamental é ser o que deixa traços, é porque não se narra um acontecimento como quem narra uma história edificante. Sua capacidade de forçar a memória é proporcional ao trabalho que ele gera. Um trabalho próprio às coisas difíceis de serem escritas por parecer não se encaixarem completamente nos padrões de histórias que conhecemos. Por isto, acontecimentos são tão raros e improváveis. Sua mistura indescritível de felicidade e tristeza, acolhimento e desamparo, impõe à memória um trabalho de reconstrução contínua, até sermos capazes de pensar de outra forma.
Talvez isto explique porque é tão comum, quando um encontro afetivo parece malogrado, um dizer ao outro: “Mas, afinal, nada aconteceu”. Mesmo que ocorrências intensas possam ter existido, nada aconteceu, porque é melhor nada ter acontecido do que encarar o árduo trabalho de conseguir encontrar lugar para experiências que seguiram rumos nos quais nos deparamos como nossas próprias limitações. Assim, apagar as ocorrências e negar a possibilidade de um acontecimento se constituir é a defesa mais forte para aqueles que não acreditam, como o velho Hegel, que as feridas do Espírito se curam sem deixar cicatrizes. Mas assim ficamos sem história.
O mesmo Hegel dizia que os momentos de felicidade são páginas em branco na história. Talvez seja o caso de completar afirmando que só os neuróticos querem uma vida feliz, com sua história desprovida de acontecimentos. Para além de uma vida feliz, há uma vida plena, que é algo outro.