Os 70 anos da morte de Arthur Schnitzler
Notas sobre a alma humana.
Os 70 anos da morte de Arthur Schnitzler.
Por Marcelo Backes.
Arthur Schnitzler nasceu em Viena no ano de 1862 e faleceu em 1931, na mesma cidade. Em 21 de Outubro – precisamente – são lembrados os 70 anos do passamento do escritor austríaco.
Mas quem é Schnitzler?
Dramaturgo, contista, ensaísta, novelista e romancista, Arthur Schnitzler elaborou na ficção aquilo que Sigmund Freud (1856-1939) estudava na ciência. Sem relação direta de dependência, sem relação nítida de influência; paralela e simultaneamente.
A semelhança biográfica entre os dois autores é muita. Ambos nasceram em Viena, ambos viveram em Viena e foram contemporâneos. Os dois foram médicos e intelectuais judeus de calibre e inclusive seu desenvolvimento profissional foi parecido: os dois estudaram hipnose e foram alunos do médico Theodor Meynert. O círculo de amigos dos dois escritores também era semelhante: ambos mantinham contato com Lou Andreas-Salomé e seu grupo de conhecidos. Schnitzler e Freud foram acusados de imoralidade e pornografia e suas obras surgiram paralela e simultaneamente. Schnitzler escreveu novelas que podem ser analisadas como casos clínicos; Freud disse que seus relatos de casos clínicos poderiam ser lidos “como novelas” ou “romances analíticos”.
Numa entrevista Schnitzler disse que se sentia “irmão gêmeo” de Freud. E Freud escreveu, em carta de 14 de maio de 1922, homenageando os 60 anos de Schnitzler: “Penso que eu tenha evitado o contato convosco devido a uma espécie de medo do duplo [Doppelgängerscheu].” Schnitzler e Freud guardavam distância um do outro e a propagada identidade entre ambos está longe de ser indiscutível. Os dois autores se encontraram poucas vezes e trocaram cerca de dez cartas apenas.
Schnitzler sempre achou que os psicanalistas adentravam com demasiada rapidez a vereda do inconsciente. Para Schnitzler, o inconsciente não está tão próximo, tão à mão, quanto os psicanalistas imaginam. Em carta a Theodor Reik, psicanalista e crítico de sua obra, Schnitzler escreve, ironicamente: “Há mais caminhos que levam para a escuridão da alma (…) do que os psicanalistas sonham (ou sonham interpretar).” Schnitzler dava muito mais valor ao “semi-consciente”, àquilo que se revela no detalhe oculto de um gesto, na clareza algo velada de uma reação. Ademais, autores como o físico e filósofo austríaco Ernst Mach (1838-1916)[1][1] foram pelo menos tão importantes no desenvolvimento da obra de Schnitzler quanto Freud. Os estudos de Mach sobre o fenômeno da descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu condenado” (unrettbares Ich) foram decisivos na composição da obra schnitzleriana.
Freud, de sua parte, afirmou um tanto enciumado, mas com outro tanto de crítica: “De modo que eu tenho a impressão de que vós, através da intuição (…) ficastes sabendo de tudo aquilo que eu descobri com meu penoso trabalho em outros seres humanos.” Ademais, quando Freud disse ver em Schnitzler um “duplo”, não podemos esquecer, também, que o “duplo” – segundo a visão do próprio Freud – é muito mais o “sinistro”, o “outro”, do que a afirmação da identidade.
Ainda assim as afirmativas que dizem respeito à identidade entre ambos são compreensíveis. Schnitzler estudou – como nenhum ficcionista antes dele – o carrossel dos instintos, a paixão humana em sua dança macabra, o amor unido à morte: Eros e Thánatos em seu abraço fatal. Para Schnitzler – e assim o autor une os dois temas – o amor é marcado pela “aura dos condenados” e carrega o cancro de sua morte já ao nascer.
Em sua obra Schnitzler revela a vida como um jogo de forças irracionais, desvenda a hipocrisia moral da sociedade e aponta seu dedo ficcional para as mazelas internas do homem. Schnitzler é o escritor do eu dilacerado: seus personagens afirmam a morte da individualidade, embora se almejem testemunhos dela, mostrando essa mesma individualidade em sua face mais patética. Em Schnitzler a aristocracia aparece em toda sua decadência e a burguesia em toda sua voracidade. Ambas quedam impotentes ao final, pois assinalam a impotência geral do ser humano moderno. O pessimismo é imenso, a melancolia no subsolo é dura e a insatisfação final garantida.
A vida e a arte
Bon vivant, Schnitzler desde cedo ocupava seu tempo livre em corridas de cavalo, jogos de bilhar, cartas e dominó nos Cafés de Viena. Frequentava concertos e fumava havanas. Dessa maneira conheceu de perto e por dentro a sociedade vienense. Participou do círculo literário Jung Wien no famoso “Café Griensteidl”, onde manteve contato com escritores de sua época, entre eles Hugo von Hofmannstahl, Felix Salten, Richard Beer-Hofmann e Hermann Bahr.
As incontáveis aventuras amorosas de Schnitzler também enriqueceram o manancial do escritor. A primeira dentre as muitas mulheres de sua vida foi Jeanette Heger, uma “doce moça” (süsses Mädel) dos arredores da cidade. Schnitzler imortalizaria a “doce moça” como “tipo” em sua obra, principalmente na teatral. Suas experiências amorosas várias vezes apareceram contadas no palco, evidenciando que sua própria vida serviu de matéria-prima para sua obra.
A mulher sempre foi um mote do amor e da morte para Schnitzler. Se na vida as mulheres eram seu ponto fraco – um sem-número de paixões dá o testemunho disso –, na literatura elas foram seu ponto forte. Suas mulheres foram suas modelos. Ele não as pintou em óleo e tela, mas em letra e papel. A importância da mulher na obra de Schnitzler aparece resumida naquilo que Friedrich Hofreiter, um de seus personagens, disse:
Sim… as pausas entre uma e outra. Ora, elas também não deixam de ser interessantes. Quando se tem tempo e humor para tanto, a gente constrói fábricas, conquista países, escreve sinfonias, vira milionário… Mas, acredite em mim, isso é tudo acessório. O essencial… sois vós! Sim, vós, as mulheres!
Embora Schnitzler tenha começado sua carreira literária muito cedo – com a publicação de A canção de amor da bailarina, aos 18 anos –, a fama chegou apenas muitos anos depois, quando já era um homem maduro. No início da carreira o autor debatia-se entre o fato de ser médico e o desejo de ser escritor, conduzindo ambas as atividades de maneira paralela, sem chegar a uma decisão terminante.
Apenas com a estreia da peça A aventura de sua vida, em 1891, é que Schnitzler anota em seu diário: “começa o reconhecimento literário”. Com a publicação do conto “Morrer”, em 1894 – uma de suas obras-primas no gênero – Schnitzler garantiria toda sua obra, inclusive a posterior, junto a Samuel Fischer, um dos principais editores alemães da época. Em 1900 apareceria “Tenente Gustl”, talvez o mais conhecido de seus contos. Com ele Schnitzler garante sua imortalidade literária, traz o monólogo interior para o âmbito da literatura alemã, concedendo à mesma um verdadeiro divisor de águas. Em 1913 Schnitzler publicaria a novela A senhora Beate e seu filho, tematizando o incesto, e em 1918 a novela O retorno de Casanova. Em 1924 apareceria uma de suas novelas mais conhecidas, Senhorita Else, na qual o autor apura ainda mais a técnica do monólogo interior. Em 1926 surgiria outra obra-prima do gênero: Aurora.
Também romancista – o autor já publicara O caminho para a liberdade em 1908 – Schnitzler publica, em 1928, o romance Therese: Crônica de uma vida de mulher em primeira edição de 30 mil exemplares, coisa que era espetacular para a época. Depois desse romance surgiria apenas Fuga para a escuridão, sua derradeira obra, uma novela genial a respeito do fratricídio e do “complexo de perseguição”. Em 21 de outubro Schnitzler faleceria, aos 69 anos, em Viena, depois de um ataque cerebral.
Um recorte na obra – duas novelas
Se a obra dramática de Schnitzler é centrada na análise social, foi na obra narrativa (contos, novelas e romances) que o autor mostrou toda sua precisão no esquadrinhamento psicológico do ser humano.
Aurora (1926) é uma das novelas mais bem acabadas de Schnitzler e uma obra-prima do gênero na literatura universal.
O enredo desenvolve-se na época anterior à I Guerra, quando Viena estava prestes a viver seu apogeu antes da queda e a Monarquia dos Alpes ainda era uma potência mundial.
Perfeitamente comparável a O jogador de Dostoiévski em termos de qualidade, essa novela de Schnitzler oferece um ensaio grandioso sobre o “jogo”, sobre a alma do “jogador”. O clima tem lá seus ares de mistério, indiciados no fulgor de alguma referência não explicada, e o desenlace é avassalador, incontinente e irremediável.
Na obra aparece toda a maestria do autor na representação do jogo amoroso “ilícito” e da morte, assim como a precisão – irônica e cética – na interpretação de seu tempo e da sociedade em que vivia. A moral de aparências e a promiscuidade social são registradas no detalhe. Também são mostrados o desejo, a sede e a busca do ato sexual adentrando as fronteiras do obsceno; a arte do instante descrita em toda sua importância: tudo aquilo que fez o crítico Alfred Kerr dar a Schnitzler o epíteto de “Maupassant austríaco”.
O final da novela é teatral. Com ele Schnitzler prova mais uma vez seu senso tipicamente austríaco de contemplar a vida como se fosse uma peça de teatro. O mundo dos personagens se reúne no palco da situação para ver o desenlace trágico dos acontecimentos. O dinheiro segue, imperturbável, o seu curso; o capricho humano, capaz da mais terrível das vinganças, atua; o amor, desfrutado, fenece; e o pano da morte cai – inexorável – sobre o palco.
A senhora Beate e seu filho (1913) conta a história de uma mulher madura, viúva, que depois de muito tempo em “repouso” sente a volta do desejo. O precipício da alma de uma mulher e mãe – Beate – é explorado até o fim e o monólogo interior – que reaparece em toda sua intensidade – é usado como estratégia para desnudar a interioridade humana, essa “terra vasta e distante”. O provincianismo austríaco é desmascarado na vida insossa e desanimada de um lugarejo.
Na obra o naturalismo de Schnitzler ainda se mostra um tanto saliente, algo didático, pouco científico, mas psicologicamente vigoroso. O escritor – como de costume – leva sua personagem a situações extremas, estica a corda da situação, analisa as saídas como se fizesse uma experiência laboratorial e obriga Beate a uma decisão irremediável. O pânico não deixa escapatória, mas a decisão final é tranquila. O suicídio – que em Senhorita Else, mais tarde, adquiriria fumos de vingança – é concretizado como ato expiatório; não apenas como reação a uma situação sem saída, mas como decisão consciente e ação espontânea. Schnitzler parece querer mostrar que é na morte – e apenas na morte – que o ser humano se livra das máscaras que carregava em vida para esconder o rosto de seus vícios, de suas fraquezas, de suas mazelas. Onde a beleza da aparência não pode mais ser recuperada, o único caminho é a auto-destruição.
O tema do incesto – fulcro da novela – Schnitzler já o tratara, embora de modo não tão evidente, em A senhora Beta Garlan, obra em que é exposta a relação entre uma tia e seu sobrinho. Mas em A senhora Beate e seu filho, o “demônio feminino” – onipresente na obra schnitzleriana – aparece em todo seu vigor. É o homem que adquire condição de “objeto sexual” nos desejos de Beate. A imagem da mulher como anjo maternal é totalmente destruída. O incesto – que, invertendo o Complexo de Édipo, parte da mãe na novela – fica mais direto, vive através de sinais e atos e se realiza na intensa comunhão final entre a mãe e o filho, entre o amor e a morte.
Arremate
“Meu querido pornógrafo”; com essas palavras o amigo e escritor Hugo von Hofmannsthal expressou todo seu carinho por Schnitzler numa de suas cartas ao autor. O que hoje apenas nos parece esclarecedor – e continua vigoroso em termos psicológicos e literários –, na época de Schnitzler afrontava e agredia. Os que não o entendiam limitavam-no a “poeta da decadência” e classificavam-no de “pornográfico”. O nazismo acusou-o de praticar uma “literatura porca” e de vilipendiar a imagem da mulher alemã, quando ele fez apenas dar a ela mais autonomia na escala social.
Já em 1912, o dramaturgo Frank Wedekind dizia que Schnitzler era um clássico. E hoje, depois de 70 anos de sua morte, o epíteto tornou-se ainda mais adequado. Schnitzler é – definitivamente – clássico e sua obra continua viva. Na condição de médico-autor, Schnitzler buliu na alma humana, auscultou os sentimentos mais secretos, anotou as paixões mais profundas e as perversidades mais doentias do homem. Schnitzler foi um mestre no domínio da língua e mostrou-se capaz de expressar na superfície morta da letra o âmago mais vivo do ser. Jamais prescreveu receitas, mas foi preciso – e genial – nos diagnósticos.
[1][1] Ernst Mach inventou também aquele que conhecemos por “número de Mach” ou “número Mach”: o quociente da velocidade dum corpo que se move num fluido pela velocidade do som no mesmo fluido.