A “desautorização” em Ferenczi: do trauma sexual ao trauma social – por Daniel Kupermann
Na construção da cena traumática, o outro está no lugar
de agente provocador, seja em ato, seja em fantasia.
Foto: Divulgação do filme “La vita è bella”
Artigo do Psicanalista Dr. Daniel Kupermann para a Revista Cult (Edição 2015)
As contribuições da psicanálise para os estudos dos traumas sociais encontram um marco inaugural decisivo: o resgate empreendido pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, no final dos anos 1920, da importância do traumatismo para a produção de sofrimento psíquico. De fato, a dedicação de Ferenczi ao fenômeno do trauma – que se acentuou a partir da sua experiência como médico do exército húngaro no front da Primeira Grande Guerra, e depois com pacientes comprometidos em sua constituição narcísica e em seus processos identificatórios – promoveu uma torção decisiva no entendimento psicanalítico acerca da importância da alteridade na produção de experiências disruptivas traumáticas.
Se o interesse originário de Freud pelo sexual como fonte de traumatismos – primeiro o abuso da criança pelo adulto (teoria da sedução), depois as fantasias sexuais inconscientes edipianas e, finalmente, a presença silenciosa, porém efetiva, de uma pulsão de morte no aparelho psíquico – já indicava que, na construção da cena traumática, o outro está no lugar de agente provocador (seja em ato, seja em fantasia), é por meio das contribuições ferenczianas que a comunidade psicanalítica é convidada a realçar a função da alteridade no contexto, atribuindo um novo estatuto às situações de violência promovidas no campo social. Ferenczi propõe uma releitura relacional do conceito de Verleugnung – a recusa perversa da castração em Freud –, indicando que o não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma “desautorização” da sua experiência (e do seu testemunho) no campo social, sendo esta “desautorização”, ela mesma, primordial na constituição do trauma.
Nesse sentido, enquanto o trauma sexual freudiano implicava, em última instância, uma operação intrapsíquica própria ao sujeito – ainda que originada por uma intrusão externa –, o trauma social, formulado por Ferenczi, explicitaria uma fratura na operação de reconhecimento no campo das relações sociais e políticas. Dessa maneira, a partir da inspiração promovida pela traumatogênese ferencziana, encontramos algumas ferramentas úteis para a reflexão acerca da dimensão clínica do testemunho e do seu acolhimento pelo outro, seja na vida cultural, seja no próprio curso de um tratamento analítico.
Saber dói: o trauma em Freud
Encontram-se, na obra de Freud, duas teorias sobre o traumatismo. A primeira, originada ainda no século 19, concebe o trauma como um excesso inassimilável pelo aparelho psíquico produzido em função de um agente externo provocador – o exemplo paradigmático é a sedução (assédio) de uma criança por um adulto –, e ficou conhecida como “teoria da sedução”. A fundamentação epistemológica para essa concepção de trauma residia sobre a perspectiva de uma criança assexuada, impedida de dar sentido a um evento erótico que, a posteriori, já na puberdade, cobrava seu ônus com juros e correção na forma da neurose. Nesse contexto, a problemática do trauma implicava, efetivamente, uma relação do sujeito com o saber: para o adolescente/adulto que sofrera assédio sexual na infância, saber dói. Esse seria o motivo para o recalcamento das representações vinculadas à sexualidade e ao desejo, e para a concepção da direção do tratamento como um empreendimento de aquisição de saber por meio das interpretações do psicanalista.
Desde então, tornou-se praticamente unânime a ideia de que a evocação das experiências traumáticas seria necessariamente positiva, sem que se questionasse o estatuto iatrogênico do testemunho; em outros termos, sem que se indagasse em que condições testemunhar uma injúria sofrida poderia contribuir para a expansão psíquica do sujeito, e em que condições adoeceria ainda mais.
Posteriormente, a partir da evidência de que a criança é sexuada e cria fantasias inconscientes de caráter edipiano – nas quais o assédio sofrido é um conteúdo típico –, Freud abandonou o que nomeara de “sua neurótica” (teoria da sedução traumática), acreditando que os relatos de suas pacientes histéricas não passavam de ficções infantis. Porém, foi sobretudo com as formulações do célebre ensaio “Além do princípio de prazer”, publicado em 1920, que o traumatismo seria relacionado ao excesso de excitação promovido no psiquismo pelas exigências da pulsão de morte. O trauma seria, assim, inerente à própria constituição do aparelho mental, e provocado pela dimensão pulsional não inscrita psiquicamente pelos processos de simbolização.
Tudo indica que Freud, longe do front, temendo a morte dos filhos que lutavam nas trincheiras e vivendo uma situação desfavorável nas condições de trabalho e bastante ameaçadora em relação às perspectivas de futuro, dedicara-se, durante e imediatamente após a Primeira Guerra, à especulação acerca das tendências destrutivas inerentes à condição humana. Porém, se a guerra é, efetivamente, uma vicissitude possível – talvez até provável – da civilização, a hipótese metapsicológica da pulsão de morte não contribui especialmente para a compreensão do contexto histórico-cultural da sua produção.
Desse modo, a psicanálise dos anos 1920 apostava suas fichas na concepção de trauma intrapsíquico, afastando-se cada vez mais das concepções relacionais de traumatismo, para as quais, dentre as condições consideradas necessárias para a simbolização dos excessos e para elaboração psíquica das feridas sofridas, está a presença sensível do semelhante.
O trauma como confusão de línguas
Alguns autores indicam que a situação linguística vivida por Ferenczi na Budapeste do Império Austro-Húngaro foi, talvez, a grande inspiradora da sua teorização do traumatismo como decorrente de uma “confusão de línguas” entre os adultos e a criança. Na Hungria do seu tempo, a língua oficial utilizada nas instituições que regulavam a vida civil era o alemão, enquanto a língua utilizada no seio da família e nas relações íntimas era o magiar. Ou seja, havia uma língua referida ao grande mundo da política, da justiça, da ciência; e uma língua “menor” empregada nas trocas afetivas – amizades, relações de parentesco, namoro etc. Ferenczi põe o dedo justamente na ferida provocada quando se é obrigado a nomear o afeto em uma língua que se mostra inadequada para esse fim.
Em sua formulação derradeira sobre o traumatismo, Ferenczi postula que a criança se encontra sob o regime da “linguagem da ternura”, uma linguagem lúdica, experimental, expansiva, dirigida ao outro, por meio da qual as experiências produzem sentido para o sujeito. Já o adulto, submetido ao recalque e à culpa, encontrar-se-ia sob o primado da “linguagem da paixão”, veiculadora das palavras de ordem e dos imperativos sociais aprisionadores.
O trauma propriamente dito ocorreria em dois tempos, entrelaçados porém distintos: o tempo da violação da criança pelo adulto cego à dissimetria existente entre suas posições, ou seja, passional na sua relação com a diferença do outro; e o tempo da “desautorização” do seu testemunho, decerto o mais decisivo e o mais funesto para a constituição da cena traumática.
Convém citarmos uma passagem já célebre na qual Ferenczi, em “Análises de crianças com adultos”, descreve o que se nomeou de segundo tempo do trauma: “O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico” (grifo nosso).
No original, escrito em alemão, onde lemos “negação” encontra-se Verleugnung. Alguns comentadores preferem traduzir Verleugnung por “desmentido”, outros por “descrédito”. Prefiro, inspirado nas indicações de Luis Cláudio Figueiredo, “desautorização”, no sentido de enfatizar a dimensão de desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático. Auto, do grego, indica aquilo que é próprio, “de si mesmo”. Os efeitos mais nefastos do traumatismo são, justamente, o comprometimento da convicção das próprias percepções, e a anestesia da afetividade, que tornam a subjetividade refém da unidimensionalidade dos imperativos veiculados culturalmente, automatizada e incapaz de qualquer pensamento crítico.
Na teoria psicanalítica da constituição subjetiva, haveria na criança um movimento primário em direção ao adulto – o Nebenmensch freudiano, aquele que está ao lado – capaz de ajudá-la a dar sentido às experiências que ainda não encontram lugar em sua cadeia representacional. Concebe-se, portanto, que o chamado primeiro tempo do trauma não seja em si mesmo necessariamente desestruturante, uma vez que o encontro com o outro pode proporcionar o suporte suficiente para que o sujeito elabore a violação sofrida. A desagregação psíquica adviria quando, justamente, aquele que testemunha encontra o abandono, na forma da desautorização da sua tentativa de produzir uma versão própria para aquilo que foi vivido como injúria.
Nesse sentido, o fato de reconhecer que a criança também está submetida a um regime “sexual”, como o fez Freud na aurora do século 20, não significa, de modo algum, que o encontro da ternura da criança com a paixão do adulto (duas “línguas” distintas que regem a nossa sexualidade) seja incapaz de promover consequências traumáticas.
A desautorização traumatizante
O desafio da clínica com vítimas de traumas e catástrofes é, assim, o de constituir uma língua própria e apropriada para enunciar aquilo que é da ordem do irrepresentável, mas também do inaudível, como depreendemos da leitura de Agamben em O que resta de Auschwitz. De fato, se a vivência sofrida não encontra modos de enunciação na linguagem cotidiana, ou seja, nos modos de representação disponíveis aos sujeitos em determinados contextos históricos, seria preciso, para transmitir algo do terror experimentado, gritar, também para poder dizer aquilo que soa insuportável aos ouvidos dos semelhantes.
A concepção de trauma social nos permite cotejar, assim, o problema dos limites do representável com o problema dos limites do testemunho. A realidade do relato de sofrimento traumático soa monstruosa e passível de provocar horror nas suas testemunhas, no sentido de convocá-las para uma dimensão da experiência humana muito além do tolerável pelos ideais compartilhados socialmente, que compõem sua visão de mundo necessariamente ordenada e estável.
Uma cena do filme A vida é bela, dirigido no final dos anos 1990 por Roberto Benigni, me permite ilustrar, pelo avesso, do que se trata a confusão de línguas traumática. O cenário é o interior de um pavilhão-dormitório de um campo de concentração. Nele estão os recém-chegados, perplexos com a sua nova e inusitada realidade. Um oficial nazista entra e começa a bradar as “regras” que regerão o cotidiano dos prisioneiros; entre eles há uma criança italiana, um menino pequeno, como todos, muito assustado, que não entende alemão. Seu pai, interpretado pelo próprio Benigni, decide então “traduzir” as palavras de ordem que ecoam pelo local como se fossem as regras de uma brincadeira que teria início logo mais, mantendo, porém, o tom elevado e o ritmo entrecortado da fala do soldado, o que cria um efeito tragicômico pelo absurdo da tentativa de conciliar a forma militarizada do discurso com um conteúdo lúdico-infantil. A tentativa – fictícia, evidentemente – seria a de poupar o menino do sofrimento por meio da inversão da linguagem da paixão em linguagem da ternura, constituindo uma espécie de proteção antitraumatizante. O recurso ao cômico nos parecer ser, longe de uma ofensa ao sofrimento das vítimas, como alguns argumentaram na época, uma manobra estilística de Benigni para expressar, em um contexto de desgaste do público com as imagens tradicionais representativas do universo concentracionário, o insuportável dos horrores impingidos à humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, ainda que não fosse a intenção do diretor, denunciavam-se, abolindo-se radicalmente as fronteiras entre o trágico e o cômico, os limites possíveis do testemunho. O espectador ri constrangido com a evocação de uma situação de horror incapaz de ser, efetivamente, transmitida pelos meios linguageiros encontrados, até então, a sua disposição.
Phármakon
A recente instauração da Comissão Nacional da Verdade pelo governo brasileiro, com o consequente convite para que vítimas de violência do Estado, sobretudo durante a Ditadura Militar (1964-1985), testemunhassem as indignidades sofridas, reeditou um problema que décadas antes ocupou aqueles que se debruçavam sobre os sobreviventes de campos de concentração: o desafio de compreender a opção de muitos pelo silêncio. Nesse quesito, a psicanálise, quando convocada a se pronunciar, encontra-se ainda em uma encruzilhada de difícil solução.
Por um lado, a traumatogênese ferencziana sugere que todo trauma é, efetivamente, um retraumatismo – há sempre um segundo tempo traumático muitas vezes mais funesto que o primeiro –, e perpetuar o silêncio das vozes capazes de contribuir para a elaboração psíquica dos episódios sofridos tenderia a eternizar os mecanismos da desautorização traumática.
Em contrapartida, sabe-se que abrir uma ferida – mesmo acreditando que esse seja o caminho da cura – arrisca sempre desestabilizar um tênue equilíbrio, obtido muitas vezes por meio do emprego de todas as forças das quais o sujeito dispõe no seu íntimo. Nesse caso, a prudência indica que não convém menosprezar o fato de que, em muitas situações, o testemunho pode ter o efeito contrário do pretendido, e nos convida a recordar Roland Barthes: obrigar a dizer pode ser tão violento quanto forçar a calar.