“Filosofia Mestiça” – Trecho do Livro de Michel Serres
Sobre a produção de sentido longe dos equilíbrios postos à priori, talvez nos diga algo o filósofo Michel Serres, em seu livro “Filosofia Mestiça” (pág. 11 e seg).
“Nada confere mais sentido do que mudar de sentido. Relatarei por meio de imagens a lembrança da mutação.
Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado só existe chão em uma piscina, território para pedestres em massa.
Parta, mergulhe. Depois de ter deixado a margem, você continuará durante algum tempo muito mais perto dela do que da outra à sua frente, tempo bastante, pelo menos, para que seu corpo se aplique ao cálculo e silenciosamente reflita que ainda pode voltar.
Até um certo limiar, você conserva esta segurança: o mesmo que dizer que ainda não partiu. Do outro lado da aventura, o pé confia na aproximação, desde que tenha ultrapassado um segundo limiar: você está tão próximo da margem que pode dizer que já chegou. Margem direita ou esquerda, não importa, nos dois casos: terra ou chão. Você não nada, espera para andar, como quem salta, decola e atinge o chão, mas não permanece em vôo.
Ao contrário, o nadador sabe que um segundo rio corre neste que todo mundo vê, entre os dois limiares, atrás ou à frente dos quais quaisquer seguranças desapareceram: ali ele abandona toda a referência.
Sentido
A verdadeira passagem ocorre no meio. Qualquer sentido que o nado tome, o solo jaz a dezenas ou centenas de metros sob o ventre ou a quilômetros atrás e na frente. Eis o nadador sozinho. Deve atravessar, para aprender a solidão. Esta se reconhece no desvanecimento das referências.
Num primeiro momento, o corpo relativiza o sentido: que importa esquerda ou direita, desde que fique junto à terra?, diz. Mas, no meio da travessia, mesmo o solo lhe falta, acabam os domínios. Então o corpo voa e esquece o que é sólido, não mais na expectativa das descobertas estáveis, mas como instalando-se para sempre em sua vida estrangeira: braços e pernas entram numa fraca e fluida portância, a pele se adapta ao ambiente turbulento, pára a vertigem da cabeça porque doravante ela só pode contar com seu próprio suporte; sob pena de afogar-se, ganha confiança na braçada lenta.
O observador de fora facilmente acredita que aquele que muda está passando de um domínio para outro: de pé em Calais como se estivesse em Douvres, como se bastasse tirar um segundo passaporte.
Não. Isto seria assim se o meio se reduzisse a um ponto sem dimensões, como no caso do salto. O corpo que atravessa aprende certamente um segundo mundo, aquele para o qual se dirige, onde se fala outra língua. Mas ele se inicia sobretudo num terceiro, pelo qual transita. Ele não andará mais nem se erguerá mais como quando só sabia ficar de pé ou andar: bípede antes desse evento, ei-Io agora carne e peixe. Não apenas mudou de margem, de linguagem, de costumes, de gênero, de espécie; também conheceu o traço de união: homem-rã. O primeiro animal desfruta de um domínio, o segundo bicho também, mas o estranho vivente que um dia entrou no rio branco que corre dentro do rio visível, e que teve que se adaptar, sob pena de morte, às suas águas extravagantes, abandonou qualquer domínio.
Por meio desse novo nascimento, ei-Io exilado de verdade. Privado de casa. Morto sem sepultura. Intermediário. Anjo. Mensageiro. Traço de união. Para sempre expulso de todas as comunidades, mas um pouco, e levemente, em todas. Arlequim já.”