Entrevista com Daniel Kupermann
“A piada como terapia”. Entrevista de Daniel Kupermann para revista Época.
Psicanalista diz que o humor é parte importante da saúde mental – e a principal ferramenta para enfrentar os medos.
por Valéria Blanc
Rir é o melhor remédio? Para uma corrente da psicologia, manter o humor mesmo nas situações adversas não é apenas sabedoria popular, mas um instrumento terapêutico. ‘O humor é uma sabedoria trágica sobre a própria finitude. Sabemos que não podemos tudo, que somos impotentes para muitas coisas, mas não permitimos que os medos, inclusive o da morte, nos paralisem’, diz Daniel Kupermann, doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao lado de Abrão Slavutzky, psicanalista e psiquiatra, Kupermann organizou o livro Seria Trágico… Se não Fosse Cômico (Civilização Brasileira), para marcar o centenário de outra obra, Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente, de Sigmund Freud. Os textos de ambos e de mais dez profissionais chamam a atenção para detalhes que, no dia-a-dia, podem fazer a diferença no bem-estar de cada um. A seguir, os principais trechos de entrevista concedida a ÉPOCA.
ÉPOCA – Qual é a importância do humor numa terapia?
Daniel Kupermann – Quem busca uma terapia quer e precisa resgatar seu potencial criativo, inibido pelo sofrimento, pela angústia e pelo medo excessivo. Por isso, a vida parece ter perdido o sentido e a graça. Durante muito tempo, considerou-se contra-indicada a presença do humor entre analista e paciente, em nome da neutralidade que deveria reger a relação. Hoje, sabe-se que não há psicoterapia sem que se estabeleça uma ligação afetiva, em que o humor é parte integrante. O inglês Winnicott (Donald Woods Winnicott, 1896-1971) definia psicoterapia como a atividade na qual duas pessoas brincam juntas, e uma das tarefas do terapeuta é trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um em que o é. Se alguém não pode brincar, não pode ser psicanalista.
ÉPOCA – E como se resgatam a criatividade e a capacidade de brincar?
Kupermann – A partir do distanciamento do drama, cultivado pela neurose. Isso permite à pessoa enxergar as razões de seu sofrimento por novos pontos de vista. O humor ajuda na formação de uma nova sensibilidade.
ÉPOCA – No livro, diz-se que Freud achava o humor essencial à cura…
Kupermann – Para Freud, o senso de humor é o principal sinal de um psiquismo sadio. Ele o considerava a forma privilegiada pela qual adultos mantêm a capacidade de brincar e de não ser esmagados pelos imperativos da vida em sociedade. No processo de cura, o humor é um instrumento precioso para caricaturar os ideais de perfeição e de onipotência que tendemos a atribuir a nós mesmos e a figuras de destaque na vida social. Nós nos permitimos rir desses ideais e, sobretudo, de nós. Freud, em alguns momentos, aproximou o trabalho do psicanalista daquele do caricaturista.
ÉPOCA – Como é possível ter um estado de espírito leve e alegre diante de fobias e fraquezas humanas?
Kupermann – É necessário desenvolver certa descrença nos ideais de felicidade propagados no mundo contemporâneo; não se levar tão a sério, sabendo que nunca atingiremos os ideais de perfeição em que aprendemos a acreditar. E nunca nos resignar a uma vida fútil e insatisfatória só pelo fato de ela ser socialmente aceita e reconhecida. É essa acomodação que aumenta a níveis insuportáveis a angústia, a fobia e a depressão.
ÉPOCA – O humor é o reverso do medo? Ou uma canalização do medo?
Kupermann – O humor não é o reverso do medo, no sentido de uma coragem heróica. O herói é aquele que se crê indestrutível, é o que tem como lema ‘nada pode me acontecer’. É o Rambo. O humor é uma sabedoria trágica acerca da própria finitude. Assim, por um lado, sabemos que não podemos tudo, que somos precários e impotentes para muitas coisas, mas, por outro, não deixamos os medos, inclusive o da morte, nos paralisar.
ÉPOCA – O que Freud quis dizer quando afirmou que o ‘humor é teimoso e rebelde’?
Kupermann – Há uma piada que traduz esse pensamento. Um condenado à forca, numa segunda-feira, diz a seus algozes que o conduzem ao patíbulo: ‘É, a semana está começando muito bem’. Com isso, ele afirma sua dignidade humana mesmo na iminência da morte. Há também um episódio biográfico de Freud, que era judeu. Para ser liberado da Áustria, durante a ocupação nazista, as autoridades da Gestapo o obrigaram a assinar um documento declarando que não sofrera maus-tratos. Freud não só assinou, como acrescentou: ‘Posso recomendar altamente a Gestapo a todos’. Ele correu riscos, mas não perdeu a piada.
ÉPOCA – O humor é nato ou pode ser adquirido?
Kupermann – O humor tem sua fonte na atividade lúdica da criança. E vira a brincadeira do adulto, fruto de sua imaginação criadora. Nesse sentido, é nato. Mas é possível privar alguém da capacidade de brincar ao sujeitá-lo a violências. Uma pessoa traumatizada tem o senso de humor comprometido.
ÉPOCA – Como recuperá-lo?
Kupermann – Para adquirir humor, é preciso desenvolver uma ‘razão lúdica’, ou seja, um misto de lucidez com ludicidade, faculdades necessárias para uma vida satisfatória e expansiva. Ter humor é achar graça nas incertezas da vida. É exercitar a descrença em todas as verdades difundidas socialmente, libertando a alma, o pensamento e a imaginação da moral, dos ideais dominantes.
ÉPOCA – Humor negro é negativo?
Kupermann – Não. O humor negro é o que mostra graça no que chamamos de ‘desgraça’, nossa e dos outros, afirmando nossa condição mortal. Por isso, pode ser considerado trágico e também cômico, porque inclui a morte na vida, sem deixar de celebrá-la.
ÉPOCA – Há o humor que faz bem e o que não faz bem?
Kupermann – Por definição, se é humor, faz bem. Mas é possível diferenciar o humor da ironia, do deboche e também do riso cínico. Na ironia e no deboche rimos do outro por acreditar que somos mais sábios e superiores. No cinismo, o riso é amargo, melancólico, porque é o riso de quem, decepcionado, perdeu o gosto pela vida. Essas formas humorísticas fazem mal, porque servem à ignorância.
ÉPOCA – Como curar uma angústia por meio do humor?
Kupermann – A angústia não deve ser curada, ela é também um motor para a ação e criação. Ela faz você trabalhar. Um artista, por exemplo, muitas vezes simboliza a angústia. O problema é quando a intensidade é traumática e paralisante. Com humor, temos sucesso em enxergar uma situação aparentemente desesperadora, atribuindo a ela novos sentidos.
ÉPOCA – Qual é sua avaliação sobre políticos que sempre dão um jeito de aparecer rindo na mídia?
Kupermann – Os políticos praticam o que o filósofo Gilles Lipovetsky chama de ‘humor de massa’, displicente e acrítico. O objetivo é evitar tensões, conflitos e impasses. Em vez de instigar o pensamento, como nas boas piadas, nos comentários espirituosos e nas charges, querem anestesiar o espírito, fazendo crer que nada importa e tudo é permitido. É o que chamo de humor ‘lubrificante social’. Com esse riso, alguns políticos buscam não receber cobrança por má conduta e nos fazer engolir as pizzas que assam.
ÉPOCA – O texto diz ainda que o humor participa como tempero essencial do erotismo. Como assim?
Kupermann – O humor seduz. Isso quer dizer que é extremamente eficiente na tarefa de romper as barreiras que separam meus interesses egoístas dos interesses dos outros, provocando intimidade e comunhão. Rir junto com alguém, assim como comer junto, é um exercício de intimidade, que favorece a aproximação sexual.
ÉPOCA – Quem tem mais humor, o homem ou a mulher?
Kupermann – Aristóteles dizia que o ser se humaniza aos 40 dias de idade, quando ri pela primeira vez. Portanto, há muito se sabe que o humor não faz distinção sexual. Há, sim, uma comparação entre o humor masculino e o feminino, enaltecendo o primeiro, mas é um resquício machista.
ÉPOCA – Seria o humor um bom contraponto à paranóia?
Kupermann – A paranóia é caracterizada pela certeza inabalável em uma versão única dos fatos. O indivíduo paranóico, cujo ego é exageradamente enaltecido, acha-se sempre no centro dos acontecimentos, todos o perseguem e querem prejudicá-lo. Seu saber é absoluto. O humor se contrapõe à paranóia ao relativizar os fatos e suas versões. No humor reconhecemos não apenas a limitação de nossa importância, mas, sobretudo, aprendemos a conviver com aquilo que não sabemos e não saberemos, o acaso.
ÉPOCA – A piada não é um remédio passageiro?
Kupermann – Uma piada, com certeza, tem vida curta, mas o cultivo do humor é tarefa para a vida inteira. A atitude humorística indica um posicionamento ético e também político.
ÉPOCA – Como cultivar o humor na dose certa?
Kupermann – Os exemplos históricos mostram bem. Algumas tiradas mudaram a percepção dos cidadãos em relação aos acontecimentos da vida e da política. Lembro da cena criada por Chaplin, em O Grande Ditador, na qual se parodia a ambição de Hitler pela conquista do mundo, fazendo o ditador se entreter jogando bola com o globo terrestre. Há também a do João Saldanha, técnico da Seleção, ao presidente Médici, que lhe pedira para convocar um jogador: ‘General, eu não me meto na composição do seu ministério, então o senhor não se mete na convocação para a Seleção’.
ÉPOCA – Mas se deve ter cuidado para evitar o ridículo, não?
Kupermann – O humor se diferencia da euforia maníaca. Ele não é, na essência, exibicionista. Não é o enaltecimento do ego que está em jogo, mas justamente suas fraquezas e imperfeições, acolhidas como parte da dignidade humana. É por isso que muito facilmente o humor revela o ridículo de todo aquele que se pretende onipotente, como aprendemos com os chargistas. Agora, para evitar o ridículo não custa ter tato. Fazer humor com quem não o tem é arriscado. Às vezes, alguém se sente ofendido porque foi feito de ridículo, o que não é próprio do humor, mas do deboche.
ÉPOCA – Existe humor politicamente correto?
Kupermann – Não. Por isso mesmo, é preciso saber onde, quando e como exercê-lo. Uma piada sobre minorias pode ser altamente embaraçosa.
ÉPOCA – Há quem tenha mau humor crônico. Há jeito para isso?
Kupermann – A distimia ou mau humor crônico é um transtorno recentemente formulado pela psiquiatria americana e equivale a uma forma branda de depressão. Ao contrário do que se pretende, não se trata de mera disfunção neuroquímica, mas de um sintoma psicodinâmico. O sujeito cronicamente mal-humorado revela uma enorme insatisfação com seu estilo de vida, responsabilizando, no entanto, o outro por seu sofrimento. Mas geralmente são pessoas capazes, que, com a psicanálise, podem transformar a inadequação em inconformismo criativo.
ÉPOCA – Os bem-humorados têm maior tendência a bons sentimentos, afetividade sadia, qualidade de vida?
Kupermann – Em psicanálise, definimos saúde como a capacidade para o amor e o trabalho criativo. E o senso de humor está, sem dúvida, na base da saúde psicológica.
ÉPOCA – Em que situações o humor se mostra necessário à vida?
Kupermann – Como forma de não se abater e de manter a dignidade perante o infortúnio. Freud, ao saber que seus livros estavam incluídos nas queimas das praças públicas de cidades alemãs, disse, em maio de 1933: ‘Que progressos estamos fazendo! Na Idade Média teriam queimado a mim. Hoje, se contentam em queimar meus livros’.
ÉPOCA – Rir é melhor que Prozac?
Kupermann – Toda atividade mental tem seu correspondente neuroquímico. Mas não se podem reduzir atitudes éticas, como a sabedoria humorística, a reações químicas cerebrais sob o risco de perdermos o que é mais próprio do humano: a liberdade. Rir, portanto, é mais barato que usar Prozac. Mas, dependendo do riso, ou seja, se for um riso de submissão, cínico, debochado, pode sair tão caro quanto. Não há panacéia para a existência.