Derrida e a Feminilidade
Derrida e a Feminilidade
por Chaim Samuel Katz
“Não se esqueçam que, neste caso, só descrevemos a mulher enquanto seu ser é determinado por sua função sexual”. Freud (1931b), conferência XXXIII, “A feminilidade”, GW, XV, p. 145.
Foucault disse que “a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais”. E aprendemos com Montaigne, citado por Derrida, que “há mais assunto para interpretar as interpretações, do que para interpretar as coisas”.[1] Portanto, é preciso considerar as conclusões de Freud no seu escrito, de 1931 e teremos que ir um pouco adiante da sua provocação e questionar acerca de a mulher ou as mulheres, tal como se colocam as questões para nós hoje, concretamente.
Na obra freudiana, a questão da mulher aparece determinada pela teoria psicanalítica explícita sobre a diferença sexual, ou seja, posta no interior de um esquema binário (masculino/feminino) que só deriva ou devém da postulação de um único sexo, o Falo. Tal Falocentrismo tem conseqüências, não apenas no campo psicanalítico, como nos regimes filosófico, cultural, social. No que nos importa aqui, é como se neste momento de sua obra Freud enunciasse Uma única Razão, idêntica a si mesma, Uma Verdade que originaria quaisquer outras idéias ou A Verdade de onde todas as afirmações emergissem. Desta Verdade descenderiam todos os corpos e gêneros, os masculinos, que a pudessem expressar adequadamente, os femininos, que a diriam falhando, arremedando ou girando fora dela.
Isto se faz, por exemplo, com o complexo de castração, que tendo o pênis como modelo de ser e pensar, elabora-o num modo abstrato como Falo e deduz daí todas as conseqüências possíveis das diferenças sexuais. Ou seja, o instrumento de postular a Razão se afirma unitário (em torno do Falo, sexo único) e os processos de elaborá-lo seriam dualistas. Daí a afirmação de dois sexos, masculino/feminino, simétricos aos sexos apresentados pelas “diferenças anatômicas”, do qual se deduzem quaisquer outras possibilidades de diferenciação sexual.
Ou seja ainda, o feminino ou a Feminilidade aparece como categoria simétrica à Razão, mas tal categoria só é pensada no interior do sistema falocêntrico e funciona como uma espécie de desregramento deste. A mulher, tal como Eva na narrativa bíblica, seria feita desde a costela do homem Adão e só este masculino se faria desde Deus.[2]
Segundo vários pensadores, assim posta a questão, a masculinidade se afirma pela presença do pênis, logo transformada em Falo, um abstrato, que se representaria como Fonte e Origem únicas da Sexualidade e do Poder.
Ora, tal posta falocêntrica implica sempre numa direção unitária. Onde o que se indaga, o que se investiga e faz questão já está respondido de antemão. Por exemplo, e para nos aproximarmos da elaboração derridiana acerca da feminilidade, ao pensar certas questões suscitadas por Emmanuel Lévinas (1906-1995), um de seus mestres e grande influência no seu pensamento, Derrida mostra como a questão da hospitalidade não pode ser objeto de tematização.[3] Para elaborá-la (desconstruí-la, seria o vocabulário de Derrida), por exemplo, é preciso atenção, reexame da intencionalidade, sua imbricação com termos que obedeçam à mesma direção, que atendam ao acolhimento do outro, à questão do infinito do Outro que antecede a tematização e a própria possibilidade de questionar. Então, o homem como ser lançado no mundo (a Geworfenheit heideggeriana), jogado no mundo, já o é pelo clamor de responder: “É preciso começar por responder. Não haveria, pois, no princípio, a primeira palavra. O chamamento só se realiza a partir da resposta. A resposta precede o chamamento, ela vem ao encontro dele, que diante dela [da resposta], só é primeiro para esperar pela resposta que o faz advir”.[4]
Com isto, Derrida se aproxima duplamente da Psicanálise, pois, em primeiro lugar, o que se acolhe vem também desde o Outro, na medida em que o “eu” não dá conta de sua expressão como tematização; bem como o “eu” não pode receber tudo o que vem do Outro, que entra enquanto hóspede, pedindo recepção incondicional, para ser acolhido ou recusado, ou mesmo ignorado. Melhor: tal “eu” é sempre com-os-outros, mas sem se reduzir ao que chamamos habitualmente de intersubjetivo, pois o sujeito está por-vir, à venir, nunca é, experimenta se tornar; e não é uma plêiade de “eus” e suas relações inter-egóicas que constituem o Outro.
Se consideramos o que estou elucidando acima, teremos outra e importante concepção de transferência e de infantil, que importa e transforma o pensar habitual da Psicanálise. As forças são sempre diferenciais, as representações não dão conta de traduzir inteiramente as experiências psíquicas, os vazios e os espaçamentos também constituem o possível a ser conhecido, o eu não dá conta da integralidade de sua intencionalidade, nem no regime das forças diferenciais menos ainda pelas representações: isto obriga a repetição transferencial, que experimenta retomar experiências de que os sujeitos nunca dão conta, ao mesmo tempo em que mostra a emergência permanente do infantil, que independe da cronologia etária. É a isto, exatamente, que os psicanalistas chamamos de sexual, o que produz a diferença sexual desde tais distâncias e espaçamentos.
Em segundo lugar, e relacionado mais diretamente com a questão usual sobre o feminino, “o acolhimento supõe também, seguramente, o recolhimento, quer dizer, a intimidade do em-si e a figura da mulher, a alteridade feminina”.[5] Esta intimidade, o regime de segredo, é da mulher e não se produz como conceito absoluto. Tal “alteridade feminina”, como a chamou Lévinas, não é afirmativa no modo absoluto, mas produzida (desconstruída) com palavras de “quase”, “senão”, “ainda não”, “por vir”, que remetem para o Infinito e não para um campo cerrado do conhecer. Infinito que não é totalizador das finitudes ou algo prévio (como na noção do sincategoremático de Leibniz), mas que se produz enquanto e como se elabora. Ou seja, não há decisão possível, mas um conhecimento em aberto, cujas aberturas se constituem enquanto o conhecimento vai se elaborando. E isto é o que indica a Feminilidade, pois não há A Verdade nem a busca do sentido único de um texto ou situação. Como deve ser nas melhores “psicanálises”, que não respeitam unicamente o que se apresenta pois têm que escutar, acolher simultaneamente a ordem do discurso e suas afetividades inseparáveis. Sem esquecer que o “escutador” nunca tem uma escuta absoluta de dentro de uma razão fálica, pois ele interfere no que escuta, por menos que o faça.
Assim, para Derrida há uma Memória feminina, que seria idêntica e unitária.[6] Ela não é, como na memória falocêntrica, um traço idêntico: é “a diferença indiscernível e invisível entre os trilhamentos (Bahnungen)”[7] Diferentemente do Freud tradicionalmente aceito (mas, Freud é múltiplo, transdiscursivo, ensinou Michel Foucault[8]), Derrida jamais afirma a unidade da memória (pois neste escrito Derrida elabora outra concepção de memória na obra freudiana). Para ele não é a castração que é o fundamento da vida, pois a vida se protege pelo traço, pela diffèrence, que é o modo (se me permito tal expressão spinozista) de organizar a vida e as experiências. “A diffèrence não sendo uma essência, nada sendo, ela não é a vida se o ser for determinado como ousia, presença, essência/existência, substância ou sujeito. É preciso pensar a vida como traço, antes de determinar o ser como presença”.[9]
Tal memória feminina é sempre sexual. Quando “algo” pré‑sexual se faz sexual, quando as duas correntes se encontram e produzem significação psíquica, é o processo de encontro que é originário, e não algum ser ou estrutura dados previamente, tal como um sistema simbólico primordial, que só estaria à espera do pré‑sexual para se constituir. Não há um Simbólico prévio, uma finalidade antecipada para a qual caminhariam (obrigatoriamente) os processos psíquicos. Do mesmo modo que Derrida mostra como não há um tempo único, que só faria reproduzir o sistema simbólico de que derivaria ou decorreria habitualmente. Esta noção de tempo unitário, tempo a posteriori (nachträglich) é uma diferença de dois espaços, e sua única função é repercorrer tais espaços, reproduzindo representacionalmente o Simbólico que o antecede (e que caberia a ele revelar), mas não é O Tempo. É um dos tempos.
Enquanto a Memória feminil é múltipla, e não revela nenhuma fonte única originária, pois ela se inaugura no modo múltiplo e permanente, conforme mostrei.
Para Derrida isto se mostra na maneira como as temporalidades se produzem enquanto forças, já que “a vida psíquica não é nem a transparência do sentido nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças”.[10] É a isto que denominamos, no campo psicanalítico, de pulsões, e as pulsões são forças, criações temporais, sempre diferenciadas, e seu encontro e diferença produzem sentido; desde sempre, pulsões são diferenças. Com este Freud assim elaborado, não consideramos as diferenças entre forças desde um Simbólico finalizador e originário, um Falo que as processasse unitariamente. Para Derrida, a memória feminil é processo, e não uma unidade, não apenas a memória do Simbólico, eternamente aposteriorizada (nachträglichgeschaft) pela Regra absoluta de um Simbólico único e centro de equilíbrio, e cuja única função seria a Revelação, que processa representações já determinadas de antemão (ou transformaria o Real em Simbólico).
Se seguimos outro escrito de Derrida, através de comentários sobre Nietzsche, especialmente da Fröhliche Wissenschaft,[11] trata-se sempre de uma crítica ao falocentrismo e à idéia de presença, mas especialmente uma indagação acerca da mulher. Qual é o estilo da mulher? É similar ao dos masculinos?
Para Derrida, na Feminilidade trata-se de um sulco, traço, sillage, marca, um Spur. Sem centro. Em Nietzsche, a questão da mulher seria: “as mulheres e sua ação à distância” (Gaya Scienza, II, 60), pois “o charme mais poderoso das mulheres é o de fazer sentir ao longe… uma actio in distans: mas para isto é preciso que haja, de cara e antes de tudo – distância”. Isto marca o estilo da mulher, o que se diferencia da figura da mulher ou do gênero da mulher. Logo, não há essência da mulher, ela não é identificável a alguma figura, pois ela é dys-Tanz, distância da própria distância. De saída, a mulher se propõe e se impõe como diferente de A verdade, pois ela seria simultaneamente mesmo e outro. O que conduz a um paradoxo da dys-Tanz, já que a mulher não é determinável enquanto figura ou função. Será preciso se aproximar e se afastar dela, como movimento para se aproximar dela, eis o paradoxo que se enuncia: tal não-verdade é a verdade da mulher. “Mulher é um nome desta não-verdade da verdade”, de uma recusa da busca de A Verdade.
Este é o paradoxo da mulher, segundo Nietzsche/Derrida, pois “a distância sedutora, o inacessível que capta, a promessa incessantemente velada, a transcendência produzindo o desejo, a Entfernung (afastamento, distância), pertencem à história da verdade como história de um erro”[12]. Mas tais condições não são negatividades, já que se afirmam em outro registro.
Em resumo, a mulher não se castra, ela não se determina falocentricamente, ela se finge de castrada, “para domesticar o mestre de longe, para produzir o desejo e, no mesmo lance, é aqui ‘a mesma coisa’, matá-lo”, matar o mestre. Portanto, a mulher é pelo afastamento da verdade, o parecer é seu ser: “mulher é um nome desta não-verdade da verdade” (idem, p. 39).
Tal é o estatuto da “verdade” da feminilidade, incidência que não crê na sua própria afirmação, ser aquilo que parece e não é, mas que parece ser. Do que decorre o mal-estar na diferença sexual, mal-estar feminil diria eu, desde a impossibilidade de se aproximar e de se afastar, ao mesmo tempo como aproximação e distanciamento. Pois “castração”, segundo Derrida, é assunto masculino.
Daí a crítica de Derrida a Lacan. A verdade que fala, o conceito central na obra lacaniana, este ponto de basta (point de capiton) é o que deve ser desbastado. A busca de A Verdade é um processo falocêntrico e logocêntrico. Na sua crítica ao falogocentrismo (centro do Falo, centro do logos), Derrida se dirige a pensar o primado do Pai. Com efeito, na obra de Lacan, a mais importante da psicanálise francesa, é o pai que inscreve o Falo no Outro. Com isto ele marcaria uma delimitação do gozo, que jorraria incessantemente. Tal limitação, o ponto de basta, não é o pai-coisa, é o Falo.
Por isto, e seguindo Hegel (Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831), Lacan postula que as coisas estão destinadas a morrer permanentemente, postas no regime da Linguagem, para que o Inconsciente exista. A Linguagem através do Falo, do ponto de basta, pelo ponto final, elimina, mata também a própria figura do pai, substituindo-a, no Outro. O que substitui a figura do pai, o pai-coisa que se substitui é o que Lacan denomina de Nome-do-Pai, que homogeneiza as “coisas” no regime da Linguagem: tal é a articulação do Simbólico. Esta primeira morte -que aponta para o fato fundador de “as coisas” serem eliminadas de saída, pois só teriam articulação possível desde sua transformação fálica- se faz em Nome-do-Pai, o ponto de basta que articula o Falo ao Outro. Só a partir da emergência deste significante, falicamente produzido, é que se poderia pensar em Cultura, Moral, leis etc. O Falo está no cerne de A Lei, pois ele é o efetuador de A Lei, o que ordenaria e coordenaria unitariamente as coisas sensíveis.[13]
Diferentemente, em Derrida o Falo não se exerce apenas desde o movimento da castração. Este movimento se faz unicamente como fechamento, desde o Falo, ignorando o movimento ou movimentos de aberturas. Para Derrida, bem como para um grande número de teóricos que estudam a Feminilidade contemporânea, as feministas são mulheres masculinas, reconhecedoras que são do falo e da castração, imaginando que tendo Um Modelo como Verdade, deixariam de ser simulacros. “O feminismo é operação pela qual a mulher quer se assemelhar ao homem, ao filósofo dogmático, reivindicando a verdade, a ciência, a objetividade, ou seja, toda ilusão viril, o efeito da castração que se liga aí” (idem, p. 50).
Assim, enquanto o homem é estilo, variação eterna de Uma Verdade fixada para sempre, a mulher é Escritura, assunção e forma de multiplicidade, a voz ou as vozes. A mulher se recusaria não apenas à crença num Centro único, determinador de quaisquer significações produzidas pela A Verdade, em Nome-do-Pai, falocentricamente articulada; como se recusaria a obedecê-lo, do mesmo modo que Lilith não obedeceu Deus, menos ainda obedeceu Adão, tendo se envolvido sexualmente com o Diabo.
Se sabemos que a vida é expansão, o que é ou onde é A Verdade? Tal Verdade fala do cerramento, da reunião, do conjuntamento, da Versammlung, e ignora a abertura, exigida pela diferença de forças. A mulher quer e é a Herrschaft, o mando, domínio, o apoderamento. Como pensou Nietzsche sobre as mulheres, desde o estatuto positivo do feminino: “sua grande arte é a mentira, sua causa maior é o parecer (Schein) e a beleza”. “Quando uma mulher busca para si uma novo adorno [Putz, adorno, toalete, coquetaria] -devo lembrar que o se adornar pertence ao eterno feminino?- isto traz consigo o medo –e traz com isto o mando, o senhorial, [Herrschaft]”.[14] O que pensam as mulheres? “Quando devo agradecer a felicidade? A Deus -e à minha costureira”.[15] Daí, a importância constitucional da mentira e das aparências (o que nos leva a outro regime importante de pensar, acerca do Narcisismo e sua crítica psicanalítica habitual, que o estabelece apenas como negativo).
Outro eixo a ser explorado seria o da relação e ligação entre a mulher e o artista. Posta no regime do parecer, se assemelhar emergindo, a mulher tem uma história alternada de histrionismo e histerismo, do mesmo modo que existem o artista histrião e o artista histérico. O que não tenho como continuar aqui, mas devo marcar o papel pharmakon do fingimento, como um paradoxo da escritura, pois a(s) arte(s) é(são) para Nietzsche “a maneira essencial como o ente se cria enquanto ente”. Ou ainda, ao se inquirir sobre a lógica da Verdade, “como então nos privar da arte, como nos privar do louco?”[16]
Com tal apreciação da Feminilidade, Nietzsche faz uma reversão (Umdrehung) do Platonismo. Não se trata de inverter ou reverter a hierarquia entre sensível e inteligível, postulando o primado do sensível, das coisas, sobre o inteligível; mas deve-se de afirmar uma outra hierarquia (como faz Derrida, considerando o Inconsciente desde os signos de percepção). Não é o caso de pensar como a Metafísica falocêntrica retirou o valor de verdade do sensível e da aparência,[17] mas, invertendo a própria questão da verdade, indagar se é possível uma Verdade que não fosse feminina, verdade-de-escritura, que tem em si sua afirmação paradoxal. Não se trata de opor feminino e masculino, como um dualismo ou um par de oposições derivado do grande Abstrato fálico, mas de produzir outra hierarquia que, no caso do que nos interessa aqui (e conforme já apontei anteriormente), introduz a Memória como produzindo e sendo produzida desde temporalidades diferenciadas e a partir dos signos múltiplos da percepção. Tal questão acerca da multiplicidade já se anunciou desde o próprio Platão.[18]
Desta perspectiva, Derrida se afasta das vias habituais e regulares da Psicanálise (dita estruturalista) e do seu modo de elaboração. Pois não se trata apenas de transformar a hierarquia falocentricamente constituída, como se deve especialmente recusar a posta do conhecimento em pares de oposição, que distinguem radicalmente Idéias belas ou pares de oposição, privilegiando unicamente o inteligível, eliminando as experiências sensíveis, os signos de percepção e, especialmente, ignorando os vazios e espaçamentos. Tratar-se-á, para ele, de fazer a idéia se tornar mulher, ou melhor ainda, de mostrar como a Idéia é também feminina (desde o que apresentei anteriormente). Mas, e eis o paradoxo retornando, se a idéia é uma forma de apresentação da verdade, ela não pode ser sempre e apenas feminina. Enquanto Platão dizia: “eu, Platão, sou a verdade”,[19] aprendemos com Nietzsche que a distância constitutiva da mulher, do que constitui fundamentalmente a mulher, impede tal proximidade: “eu” não pode ser, no sentido mais fundamental, conforme ensinou Freud.[20]
Daí a introdução da questão da castração. A Verdade só poderia se enunciar desde o que conhecemos como complexo de castração, como um verdadeiro atentado ao pudor feminino (observe-se o “verdadeiro”, posto aqui como afeto paradoxal), mas é preciso considerá-la enquanto abertura permanente, como questão posta sem resposta e que precisa constantemente do acolhimento, da hospedagem incondicional.
Daí a distinção nietzscheana, acompanhada por Derrida, entre a mulher castrada, que mente e seduz, a mulher-como-verdade, a mulher que é castrada para caber num modelo idealizado e previamente construído; que Nietzsche distingue da mulher castradora, astuciosa, esta que mente, mulher afirmativa: dionisíaca, afirmativa, artista, dissimuladora, apropriadora. A mulher castradora afirma as paixões, se deixa levar por elas (é elas?), se desloca permanentemente de uma suposta essência. [21]
Assim, desde a produção falocêntrica, a mulher é rebaixada como figura que mente, como a que não pode crer na verdade, que só seria sujeito de verdade ou de A verdade obedecendo à castração, eliminando ou delimitando seu gozo-a-mais (só há gozo-a-mais desde a leitura falocêntrica). Daí o advento da mulher como figura secundária, feita da costela do masculino. Do que decorre que a mulher só poderia ser por relação ao Falocentrismo como alguém que o joga, o interpreta pela astúcia.
Mas, a mulher não é verdade nem não-verdade. Mas é deste modo, por exemplo, que a Igreja (as Igrejas) procede(m) pela castração, recusando a positividade das paixões. No Feminismo se experimenta afirmar a mulher como o mesmo que o masculino, mantendo a castração e o Falocentrismo.
Em resumo, Derrida fala de três posições possíveis, que poderiam articular a questão da mulher (e não a figura ou o lugar, o topos da mulher): 1ª, desde o Falo-verdade, a mulher da vergonha, mulher castrada, posição reativa; 2ª, a mulher é Verdade, mas é astuciosa, despudorada, castradora; 3ª, a mulher enquanto potência afirmativa, ativa, reconhecimento positivo da dissimulação, da artisteria existencial, do dionisíaco.
Portanto, conforme Derrida, em Nietzsche há hímen, phármakon, que jamais é unitário, originário ou teleológico. Não há oposto entre mulher e homem, mas multiplicidade e diferença.
É por aí que volvemos a Freud, pois isto implica na afirmação do mal-estar entre os sexos, e em cada sexo. Do mesmo modo que um Freud feminil postulava “suas verdades” (meine Warheiten), e não A Verdade, é porque no seu pensamento não há Verdade, conforme gostaria o Falocentrismo.
A Feminilidade autêntica é com e sem outro, pois não há oposição entre os elementos que a constituem: há um não-lugar da mulher (idem, p. 98). Com tal posição, que se deve denominar de himenêutica, emergem novos elementos para pensar também e fundamentalmente a clínica psicanalítica.
BIBLIOGRAFIA
Freud (1931b), conferência XXXIII, “A feminilidade”, GW, XV.
Jacques Derrida, Eperons. Les styles de Nietzsche. Flammarion. Paris, 1978
Derrida, “La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines”. In Jacques Derrida, L’écriture et la différence. Seuil, Essais. Paris, 1979, p. 409.
Márcia Arán, “Os Destinos Da Diferença Sexual Na Cultura Contemporânea” In Estudos Feministas. Florianópolis, 11(2): 399-422, julho-dezembro/2003.
Ana Maria Amado Continentino, “Derrida e a diferença sexual para além do masculino e do feminino”. In Paulo Cesar Duque-Estrada organizador, Às margens. A propósito de Derrida. PUC-Loyola. Rio e Janeiro, 2002.
[1] “La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines”. In Jacques Derrida, L’écriture et la différence. Seuil, Essais. Paris, 1979, p. 409.
[2] Sabemos que, no Zohar (escrito ou compilado por Moses de Leon no século XIII), este conjunto de livros que interpreta a Bíblia misticamente (Zohar diz “radiante”, “esplendor”), aparece uma mulher originária, Lilith, que não teria nascido desde a costela de Adão, mas como metade da divisão que Deus faz de um ser andrógino, fabricado de barro. Cf. Gershon Scholem, A cabala e seu simbolismo. Trad. Perspectiva. São Paulo, 1988.
[3] “A palavra acolhimento” In Jacques Derrida, Adeus a Emmanuel Lévinas. Trad. Perspectiva. São Paulo, 2004.
[4] idem, p. 42, grifo do autor.
[5] idem, p. 45, grifo do autor.
[6] Sigo “Freud et la scène de l’écriture” In Jacques Derrida, L’écriture et la différence. Seuil. Paris, 1971.
[7] idem, p. 205. Lembro que a palavra Spur diz em Freud o sulco, o trilhamento. Em francês se escreve como eperon. É este o título do escrito mais direto de Derrida sobre o feminino, e que será nosso próximo assunto.
[8] Michel Foucault, “Nietzsche, Freud, Marx” [1967]. In Dits et écrits I 1954-1988. Gallimard. Paris, 1994. Sobre “o caráter sempre inacabado da demarche regressiva e analítica em Freud”, a característica permanente de inacabamento da interpretação: “… através de todo o estudo da transferência, a inesgotabilidade da análise, na característica infinita e infinitamente problemática da relação do analisando ao analista e onde se abre o espaço no qual ela [a análise] não cessa de se desdobrar, sem jamais poder se acabar” (pp.569/70). .
[9]‑Derrida, 1971, p. 302, meu grifo.
[10]‑Derrida, 1971, p. 185, nosso grifo.
[11] Jacques Derrida, Eperons. Les styles de Nietzsche. Flammarion. Paris, 1978
[12] idem, p. 72.
[13] Cf. Jacques Lacan, Seminário, livro 3. As psicoses. Trad. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1985.
[14] Nietzsche, Para além do Bem e do Mal, 232.
[15] idem, 237 (“Sete proverbinhos femininos”).
[16] A Gaia Ciência, 107 (“Nosso último reconhecimento para com a ciência”). .
[17] Cf. o conhecido escrito de Derrida, “Freud et la scène de l’écriture” In, L’écriture et la différence, op. cit.
[18] Isto não escapou ao Platão dos últimos diálogos, escritos na sua velhice. Num de seus grandes e iluminados escritos dialéticos, Diálogos, Platão pensa sobre essas mesmas dificuldades, colocando frente à frente Sócrates (470 a.C. – 399 a.C.) e seu antigo mestre indireto, Parmênides (540 a.C.- 460 a.C.)
” (Parmênides) – Acreditas que haja também, por exemplo, alguma forma em si e por si do justo, do belo, do bom e de todas as outras coisas dessa espécie?
(Sócrates) – Sim, disse-lhe.
(P) – E também uma forma de homem distinta de nós e de todos os homens como nós, uma forma em si do homem, uma forma de fogo e de água?
(S) – Estive, freqüentemente, Parmênides, responde Sócrates, perplexo a respeito destas coisas, não sabendo se era necessário julgá-las como as precedentes, ou diferentemente.
(P) – O és também, Sócrates, a respeito das coisas que poderiam parecer ridículas, como o pelo, a lama, a imundície, ou qualquer outra coisa insignificante e sem valor? Já te perguntastes se é preciso admitir que há para cada uma delas uma forma à parte, distinta, também ela, das coisas que tocamos com as mãos?
(S) – Não, respondeu Sócrates. Para as coisas que vemos, não duvido de sua existência; mas pensar que exista delas uma forma, receio que seja demasiado estranho. Contudo, aconteceu-me às vezes sentir-me perturbado e perguntar-me se todas as coisas [o pelo, a lama e a imundície] não têm igualmente sua forma. Depois, quando parei para pensar sobre isto, desviei-me apressadamente, com medo de cair e me afogar num mar de besteiras. Voltado à coisas [Idéias, elevadas…] de que dissemos haver formas, consagrei-lhes meu tempo e fiz delas meu estudo.
(P) – É porque ainda és jovem, Sócrates, retomou Parmênides, o a Filosofia ainda não se apoderou de ti, como o fará, tenho certeza, quando não mais desprezares nenhuma dessas coisas …. “. Platão, Parmênides, 130b-e.
[19] “1. O mundo verdade, acessível ao sábio, ao religioso, ao virtuoso – ele vive nele, ele o é (forma arcaica da idéia, relativamente inteligente, simples, convincente. Paráfrase da frase.- ‘Eu, Platão, sou a verdade’)”. Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos (“Como, enfim, o ‘mundo verdade’ tornou-se fábula”).
[20] Como ocorreu com o pensamento dos primeiros filósofos, os Eleatas, que acreditavam poder viver as antinomias dos erros naturais (a relação entre sensível e inteligível, este último como fundador dos sensíveis): desde que enunciadas tais antinomias, elas se apagariam. E o pensador se identificaria com A Verdade. Cf. A Gaia Ciência, 110 (“Origens do Conhecimento”). Peço que se considere que a elaboração das teses nietzscheanas e derridianas conduzem a clínica freudiana para outras vias.
[21] Para os que seguiram o seminário anterior da Formação Freudiana, acerca da autenticidade, peço que relembrem que na Feminilidade, tal como Derrida a desconstrói, não há uma busca da Verdade como des-velamento, uma alethéia, como se aprende na obra de Heidegger. Que a autenticidade (Eigentlichkeit) feminina se faz distinta de acordo com o desdobramento da Feminilidade. Cf. CSK, “Multiplicidade e ambivalência da Autenticidade”, ainda não publicado (impublicável??).