“O país do autoengano” – uma entrevista com André Martins.
Para psicanalista, recentes erupções de violência no Rio de Janeiro mostram que, sob a fachada do ufanismo desenvolvimentista, o Brasil esconde as velhas mazelas de sua modernização imperfeita.
O país do autoengano
Por Ivan Marsiglia
O conceito de “retorno do reprimido”, descrito por Sigmund Freud pela primeira vez em 1895, é um mecanismo de defesa segundo o qual os conteúdos reprimidos, expulsos da consciência de uma pessoa, tendem a reaparecer constantemente. Três tragédias ocorridas sucessivamente no Rio de Janeiro nos últimos dias parecem sintomas de algum distúrbio oculto. Na manicure que asfixiou sem dó um menino de 6 anos com quem convivia, no estupro brutal de uma turista americana que pegou uma van em Copacabana e na agressão incompreensível que teria provocado a queda de um ônibus de cima de um viaduto expressam-se os sintomas de um antigo mal-estar de nossa civilização: a violência.
Nascido em São Paulo e radicado no Rio, o filósofo e psicanalista André Martins Vilar de Carvalho vê nesses acontecimentos a ponta do iceberg do autoengano nacional. “A propaganda enganosa da pacificação do Rio é a mesma do Engenhão construído há só cinco anos, que corre o risco de cair na cabeça da multidão”, compara. “O Brasil vive uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar dinheiro com o social.”
Doutor em filosofia pela Universidade de Nice e em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor associado, Martins diz ter a sensação de que tudo é feito hoje no País apenas para montar uma fachada que esconde nossos problemas mais profundos. Isso é perigoso e “favorece junto a pessoas com menos estrutura psíquica a ideia de que esta é uma terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos”. O professor sustenta que as psicopatias, embora individuais e independentes de formação ou classe social, relacionam-se inevitavelmente ao descaso persistente com a primeira infância em nosso país.
Na entrevista a seguir, o autor de Pulsão de Morte? – Por uma Clínica Psicanalítica da Potência (Editora UFRJ, 2010) e O mais Potente dos Afetos: Spinoza e Nietzsche (Martins Fontes, 2009) vê na violência que emerge no cotidiano nacional os sinais da modernização imperfeita do País – em especial a marca persistente da escravidão, que “naturalizou” o fosso social brasileiro e a cultura do privilégio e do interesse mesquinho, que se manifestam tanto na corrupção política quanto nos instintos particularmente animais de certos empresários.
O estupro de uma turista dentro de uma van e o assassinato de um menino de 6 anos pela manicure que frequentava sua casa parecem ter feito o Rio despertar do sonho pacificador das UPPs para uma espécie de ‘retorno do reprimido’ da violência. O que houve?
Vejo as UPPs não como uma política ideal, mas possível, que age de maneira razoavelmente eficaz contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Acontece que a violência que emerge agora não é fruto desse contexto. No caso da van, foram uma série de assaltos e estupros cometidos por três indivíduos e a manicure, uma mulher que cometeu o crime sozinha. O que vale colocar em questão aqui é esse “sonho pacificador”, é a política local transformar uma iniciativa bem-sucedida em uma grande propaganda de um Rio de Janeiro pacificado. Isso é que é falso. Faço uma analogia, guardadas as devidas proporções, com o Engenhão interditado. Às vésperas da Copa do Mundo e da Olimpíada, a coisa é apresentada como se o Rio não tivesse mais problemas, virou uma cidade organizada, valorizada… Aí um estádio que foi construído cinco anos atrás corre o risco de desabar na cabeça da multidão. Descobre-se que a construção foi malfeita, obviamente por algum tipo de superfaturamento – e digo isso sem nenhum cuidado porque acho que é preciso dizer o óbvio. É a mesma propaganda enganosa que assistimos sobre a violência.
O colunista carioca Artur Xexéo escreveu, sobre os últimos acontecimentos, que ‘quando a cidade se olhar no espelho e vir o que ela realmente é por debaixo das muitas camadas de maquiagem e aplicações de botox, talvez descubra como se tornar maravilhosa de verdade’. O Rio e o Brasil padecem de certo distúrbio de autoimagem?
Concordo, inclusive em relação ao Brasil, que vive uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar dinheiro com o social, interessando-se pelo lucro a qualquer custo. A violência que escapa nesses dois exemplos, dos rapazes da van e da assassina do menino, é proveniente de indivíduos que refletem um descaso social como um todo. Para usar um termo que tem origem na filosofia política do século 17, o Brasil pode até ter um contrato social, mas ele está muito corrompido. E o que não temos é um pacto social, não existe um discurso de construção de fato de um país para todos. O que existe e, mais triste ainda, é aceito, são interesses individuais ou de pequenos grupos mesquinhos, mas não uma disposição de pensar o coletivo. A ideia do “cada um puxa a sardinha para seu lado” está legitimada socialmente no Brasil.
Então as oportunidades representadas pela organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas estão sendo jogadas fora?
Exatamente. Poderíamos estar aproveitando esses eventos para, dentro de um capitalismo minimamente responsável, utilizá-los para captar recursos para melhorias sociais. Todo mundo sabe disso, mas ninguém faz e ninguém cobra. Há um sentimento geral de que tudo é feito no Brasil hoje apenas para montar uma fachada. É algo muito desanimador. E que, no meu entender, favorece junto a pessoas que têm menos estrutura psíquica a ideia de que o Brasil é terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos.
Na mesma semana, a queda do ônibus de um viaduto durante uma briga banal entre o motorista e um passageiro mostrou até onde os impulsos agressivos do cotidiano podem levar. O que o fato de ambas as tragédias terem ocorrido no transporte público sinaliza?
Esse mesmo descaso com a coletividade. Não é por acaso que o transporte público tanto no Rio como em São Paulo, onde nasci, é tão ruim. E, a partir de um certo nível social ou de idade, ninguém mais quer andar de ônibus, por exemplo, ao contrário do que acontece na Europa ou nos EUA. O universitário que agrediu o motorista já tinha vários antecedentes de violência física. Aquele ônibus já registrava 40 multas, quase a metade por excesso de velocidade. Os motoristas não são fiscalizados e devem cumprir metas de número de viagens diárias. Como motoristas despreparados e sem formação continuam dirigindo? E a responsabilidade dessa companhia de ônibus? Por que não se interessa pela pressão sofrida por seus motoristas, mas ao contrário a exerce e a agrava? No caso dos três rapazes na van, também: se eles já haviam cometido diversos assaltos e estupros, com denúncias registradas inclusive em delegacias da mulher, por que nada foi feito? O mesmo pode ser dito quanto às diversas irregularidades absurdas vigentes no incêndio da boate em Santa Maria no Rio Grande do Sul, quando gestão privada e poder público se preocupavam exclusivamente com o lucro que o negócio gerava. É um problema não só político, mas jurídico. A Justiça brasileira tem que renovar sua forma de funcionar. E Brasília dá um péssimo exemplo com a corrupção, não só do mensalão, que pelo menos foi julgada, mas no sentido amplo da palavra – por sua falta de zelo com a res publica, a coisa pública.
De que maneira as ferramentas da psicanálise ajudam a compreender a violência?
É uma psicopatia grave a dessa moça que sequestrou e assassinou um menino com quem convivia havia três anos. O que se percebe é uma falta de identificação com o outro. Essas pessoas, seja a manicure, sejam os rapazes da van, manifestam uma perversidade e indiferença para com o outro. O processo de identificação com o outro se dá ao longo da vida, mas fundamentalmente na infância. Quando a criança lida com cuidadores hostis a ela, pode separar no processo identificatório – que está na origem da capacidade de se sensibilizar com o outro – aqueles com quem se sensibiliza e outros com por quem não sente nada. A pessoa que desenvolve essa psicopatia pode até nutrir sentimentos em relação à mãe, um amigo ou parente, mas não se sensibilizar, por exemplo, por uma criança de 6 anos que conviveu com ela, como aconteceu no crime da manicure. Ou pelas várias mulheres que esses homens estupraram, com uma violência capaz de quebrar ossos. Isso significa que filhos de classes mais pobres vão estar necessariamente mais inclinados a esse risco do que os ricos que estudaram em bons colégios? Não. Está aí o caso Suzane Richthofen para mostrar. Ou o próprio agressor do motorista do ônibus, que tinha nível universitário. Mas é preciso reconhecer coletivamente a importância desse cuidado na primeira infância – algo que o País não tem feito. Um exemplo é a falta de creches boas e em número suficiente. Aqui, de novo, não basta “entregar” fisicamente tais obras, mas se preocupar com a qualidade do que será vivenciado lá dentro. O mesmo acontece com a educação pré-escolar e no ensino fundamental. É algo gritante e urgente.
Dois dos crimes que o sr. cita tiveram um componente sexual – evidente no caso do estupro, mas presente também na acusação, feita pela manicure, de que estaria sendo assediada pelo pai do menino. Ambos não parecem ter sido cometidos só pelo benefício financeiro. Por que foram então?
Primeiro, não vejo que esses crimes possam ser atribuídos a aquelas pulsões agressivas do ser humano que Freud chamou de pulsão de morte ou destrutiva, ou a uma pulsão sexual vista como fundamentalmente bestial. Três rapazes que sentem mais prazer em violentar mulheres para poder ter uma relação sexual paradoxalmente não estão encontrando o gozo no sexo em si, mas na violência. Uma pessoa minimamente saudável, numa situação dessas, perderia o interesse, acharia deprimente. Muito mais do que expressar pulsões naturais ou bestiais do ser humano, eles estão se excitando sexualmente por uma violência hedionda e atroz contra outra pessoa. Eu vejo como parte dessa patologia comum da não identificação, que gera uma raiva difusa e uma destrutividade por essa vítima que eles não conhecem, como no caso da van, ou que conhecem muito bem, como no caso da manicure. Repito: a não identificação é construída em relações afetivamente precárias da primeira infância, não é “natural” ou instintiva.
Seu trabalho discute a forma como o corpo é manipulado na atual sociedade de consumo. Como a violência se insere nisso?
É outro aspecto, mas que se liga a esse que acabamos de discutir. A propagação, seja por interesses de mercado ou financeiros, de um ideal de corpo perfeito, de felicidade financeira perfeita, de relações sexuais performáticas, cria uma pressão psicológica social que suscita nas pessoas que se percebem distantes desses ideais um mal-estar, que pode se expressar em ressentimento. Que, em casos graves, pode se expressar em violência, destruição em relação a essa sociedade em que elas não se encaixam.
Então, a mistura do déficit social brasileiro com a expansão das possibilidades de consumo tem um potencial explosivo.
Sim. E aí podemos voltar àquele ponto inicial do sonho pacificador não só no Rio de Janeiro, mas do momento econômico do Brasil. Do que a gente está se vangloriando tanto? De que as classes C, D e E possam consumir? Isso é muito bom em vários aspectos. Agora, a possibilidade de consumir vir à frente da sociedade ter um pacto coletivo, sentir-se coletivamente envolvida numa melhor distribuição de renda, com melhorias na saúde, na educação e na moradia, é uma visão deturpada do coletivo. E a violência é uma face disso.
Há diversas explicações para o caráter violento da sociedade brasileira, desde as que culpam o trauma da colonização, as que apontam nossa prolongada escravidão, até o precário acerto de contas com violações cometidas durante a ditadura militar. Qual dos fatores concorre mais, em sua opinião?
Todos concorrem, mas o segundo, no meu entender, é sem dúvida o predominante: a nossa história de escravidão. Porque nos outros dois outros fatores podemos até encontrar aspectos positivos. No caso da colonização, apesar de toda a violência, tivemos a miscigenação, a mistura de raças, que nos trouxe qualidades distintivas. Mesmo em relação à ditadura, com a sua injustiça escandalosa, há o elogiável sentimento brasileiro de não cultivar o ódio ou a vingança. Já a herança escravocrata é particularmente perversa: ela cria um sentimento de desigualdade social aceito de maneira não questionada no Brasil. E também uma perversidade na relação de poder, a ideia de que inevitavelmente vai existir uma elite, que esse fosso de distribuição de renda “faz parte”. É um sentimento muito ruim, muito prejudicial para o pacto coletivo de que precisamos.
O componente sexual dessas agressões pode também estar relacionado a essa herança escravocrata?
Sem dúvida. Na escravidão, como se sabe, as negras eram também escravas sexuais. O que difundiu uma percepção de que é legítimo submeter sexualmente o outro à força, de que o sexo não é nem precisa ser algo bom e consensual entre parceiros, um prazer ou uma alegria compartilhados. Isso é cultural, não um comportamento advindo de alguma natureza bestial do ser humano. Nem tem a ver com o sadomasoquismo, que é um jogo compartilhado. Mas com o desprezo pelo outro e o prazer pela violência.
Como o Brasil pode lidar melhor com esse conteúdo violento que parece tentar negar, seja nesse ufanismo pré-Copa, seja sob a eterna fantasia do povo alegre e festeiro?
A tese que defendo é que é inútil para o Brasil tomar a Europa como um modelo civilizatório. A civilização, no sentido europeu do termo, conseguiu combater uma violência primária, direta e sem mediação, ao preço de desenvolver uma violência secundária, que se dá em nome da civilização, de forma institucionalizada – e cujo maior exemplo são as guerras. Há menos violência nas ruas, mas mais violência contida que estoura no momento de uma guerra. No Brasil, a gente manteve uma violência primária que vem junto com o nosso tão propalado caráter cordial.
Que não é necessariamente positivo, como alguns interpretam.
É isso. A cordialidade, como bem definiu Sérgio Buarque de Holanda, vem da palavra “coração”: é uma não mediação social. Algo assim: “Olha, vou ser muito gentil com você, se você for comigo. Mas se você não for, vou ser muito violento”. É o contrário do que ocorre na Europa, onde predomina a polidez: mesmo pessoas muito zangadas e com raiva das outras, mantêm uma delicadeza dissimulada no trato. Enquanto a cordialidade aproxima, para o bem e para o mal, a polidez afasta, para o bem e para o mal. Penso que essa reflexão pode orientar o Brasil no sentido um projeto de coletividade: não vale a pena a gente aspirar a um processo civilizatório tal como o da Europa, pois muito dificilmente a gente vai aceitar essa imposição da lei, no sentido psicanalítico, pelo preço que isso acarreta. Então, insistir nisso é insistir num provincianismo brasileiro de pensamento que considera que o modelo dos outros é bom em todos os aspectos e o nosso ruim em todos os aspectos. Porém, para que serve observar esses modelos? Para tentarmos entender que um certo respeito às instituições, um pouco de polidez, e ter um pacto social de projeto de coletividade é preciso – mas isso pode ser feito a nossa maneira. Mantendo o aspecto cordial do povo, que aproxima as pessoas, mas aprendendo o valor do respeito às instituições, jurídicas, políticas e de organização urbana. Tentar importar a polidez europeia nunca vai dar certo e vira uma desculpa para não se fazer nada. E acaba nos levando a simplesmente enaltecer a cordialidade, sem perceber que, sem o respeito às instituições e um projeto de coletividade, junto com ela vem a violência.
* ANDRÉ MARTINS É FILÓSOFO, MEMBRO DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO RIO DE JANEIRO E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE PULSÃO DE MORTE? (EDITORA UFRJ, 2010).