“O caso fundador da psicanálise” – por Susan Guggenheim
Texto da Psicanalista Susan Guggenheim sobre o caso de “Anna O” (Bertha Pappenheim), no período entre o fim da era vitoriana e os primórdios da psicanálise.
Bertha Pappenheim tinha 21 anos quando foi diagnosticada como histérica pelo famoso médico vienense de 38 anos, Joseph Breuer. A jovem judia de família ortodoxa, moradora no elegante apartamento da Liechtensteinstrasse estava recolhida em seu quarto sofrendo de contraturas, de paralisia no lado esquerdo do corpo, mergulhada num mutismo, quando recebeu os primeiros cuidados do Dr. Breuer.
O sofrimento de Bertha começou a partir dos cuidados que dispensara a seu pai Sigmund Pappenheim, gravemente enfermo, em consequência da tuberculose. Ela passara dias e noites ao lado do pai doente, até que ela própria adoeceu.
A mãe de Bertha depositou todas as suas esperanças de cura de sua filha no famoso médico, interessado na histeria, no uso da catarse e da hipnose. O tratamento durou de 1880 até 1882 e somente em 1895 foi publicado como o caso Anna O., numa parceria de Freud com seu amigo Breuer.
Mas o que o caso desta jovem tem de tão importante? A histeria era a doença exemplar da época Vitoriana. A psicanálise ainda não existia.
Foi precisamente Bertha Pappenheim esta jovem culta, poliglota que interrompe o ciclo da hipnose com o que ela chamou de “talking cure” que permitia a “ chimney sweeping”. Assim, falar sem ser interrompida, “limpando a chaminé” ajudava a diluir os seus sintomas. Do total mutismo até as falas em inglês, francês, italiano, alemão muito pode ser revelado.
A morte do pai após três meses de tratamento fez com que os sintomas se agravassem. Ela para de comer, de beber e a ideia de suicídio se fez presente. Por precaução, a família se muda para uma propriedade no campo. Apesar da distância de Viena Breuer não se afastou e prosseguiu no tratamento.
Um fato, no entanto, interrompe a presença do tão dedicado Breuer. Quando Bertha, já praticamente livre de seus graves sintomas, começa se contorcer com dores abdominais. Breuer a observa e ela lhe diz: “ agora vem o filho do Dr. Breuer”. Assustado ele abandona o seu lugar e indica o seu colega Robert Biswanger, que a interna numa clínica.
Joseph Breuer era um grande amigo de Freud e compartilhava com ele o interesse pela histeria. A sólida amizade envolvia além dos interesses científicos a ajuda financeira que Breuer dispensava a Freud que tinha também, por ele enorme admiração. Ao nascimento da sua primeira filha Freud lhe dá o nome de Mathilde, nome da esposa de Breuer.
Freud publica em 1891 os Estudos sobre Afasia e consegue convencer o relutante Breuer a publicarem o Caso Anna O. Freud já convencido da importância da sexualidade na origem dos sintomas histéricos não consegue que Breuer aceite a presença do sexual na etiologia da histeria.
Curiosamente, só depois de alguns anos após ter abandonado o caso, Breuer revela a Freud o episódio da “gravidez de Bertha” e pede que ele não conte nada a Martha até eles se casarem. Martha, então, noiva de Freud era amiga de Bertha Pappenheim.
A publicação do caso expressa a parceria dos dois amigos, mas ela também os afasta. A não aceitação de Breuer da teoria da sexualidade proposta por Freud e a profunda amizade que este já estabelecera com Fliess, que aceitava a sexualidade na origem das neuroses podem explicar, em parte, a separação dos dois amigos.
O que podemos nós, psicanalistas no século XXI recolher dos ensinamentos deste caso inaugural?
Anna O. era uma jovem inteligente, e de suas paralisias e alucinações surgiram pensamentos muito originais. Expressou-se com palavras em diversos idiomas. Era preciso falar e melhor, o médico deveria ouvir para que a fala fluísse. Ela expos todo o seu sofrimento quando emudeceu, parou de se alimentar, paralisou seus movimentos e diante do atencioso Breuer, de sua presença diária pode despertar a sexualidade “adormecida”, hoje dizemos recalcada. A suposta gravidez era uma prova concreta do amor de transferência. Mas Breuer não contava com este efeito.
Freud soube entender o susto de Breuer diante da transferência erótica. Criou a psicanálise ouvindo o que os neuróticos lhes diziam. Era preciso ouvir e interpretar as falas que vinham do inconsciente, o que os sonhos poderiam revelar e fazer de toda dor, sofrimentos banais.
Bertha Pappenheim, uma feminista se tornou a primeira assiste social da Alemanha dedicando-se a acolher jovens judias pobres e inúmeras órfãs que eram levadas a prostituição. Na Alemanha, pelo seu pioneirismo foi criado um selo comemorativo em sua homenagem
Hoje, estamos distantes dois séculos da Belle Époque vienense. O nosso mundo urbano, globalizado provoca novos sintomas e novas abordagens. A inovação lacaniana se sedimentou a partir dos anos 60, numa Paris sob os ecos de maio de 1968. Atualmente, a presença da psicanálise se rivaliza com as neurociências e com os excessos de medicamentos que tentam controlar os sintomas psíquicos.
Será bastante difícil encontrarmos hoje em nossa clínica uma Bertha Pappenheim tão culta e virgem aos 21 anos. Mas recebemos com frequência, distúrbios alimentares, anoréxicas, que se recusam em viver e pessoas que clamam por uma nova identidade sexual. Vamos ouvi-los como ela pedia. Se os sintomas têm novas formas de apresentação, os seus múltiplos semblantes são desafios. Freud com Bertha Pappenheim forneceram referências fundantes sobre os sintomas histéricos e como entende-los.
Susan Guggenheim
Psicanalista